Desde o debate da Constituinte, que culminou na Constituição Federal de 1988, alguns temas não foram consenso entre os atores políticos envolvidos, de um lado o empresariado e de outro os trabalhadores e as populações tradicionais. Tampouco as mobilizações construídas na década de 1980 conseguiram avançar mais do que o texto final da CF. Um dos temas polêmicos foi a questão garimpeira, os cenários conflituosos em Serra Pelada, no Pará, e em diferentes Terras Indígenas, na Amazônia, estavam no imaginário político do momento. O consenso para o texto final foi somente que o Estado deveria fomentar a legalização das atividades garimpeiras através da organização cooperativada, mas sem delimitar desde o início onde seriam as áreas destinadas a essa forma de extração mineral e de que modo se daria.

Passaram se mais de 30 anos, muitos movimentos aconteceram: conflitos com grandes empresas do setor, com o Estado, povos indígenas, construção de cooperativas legais e de fachada, especuladores intermediários e, principalmente, a mudança no sujeito garimpeiro, que deixou de ser exclusivamente pequeno e artesanal, para ser uma mineração mecanizada. Porém, nenhum representante que assumiu a Presidência da República conseguiu resolver o conflito de interesses existente entre os grandes grupos financeiros que atuam na mineração, as cooperativas garimpeiras e os povos tradicionais que vivem nos territórios.

No setor mineral brasileiro a força política e econômica das corporações de mineração tem sido grande nos últimos trinta anos, desde a privatização da Vale do Rio Doce até a procrastinação nos pagamentos das dívidas às comunidades impactadas pelos rompimentos e ou vazamentos de barragens de rejeitos de mineração, que ocorreram nos últimos 10 anos.

As demandas dos trabalhadores que atuam na garimpagem, começaram a ser atendidas no final da primeira década do século XXI, justamente no conflito existente entre a empresa canadense Colossus Minerals e a Cooperativa de Mineração dos Garimpeiros de Serra Pelada (Coomigasp), no entanto ainda não foram resolvidas. Desde o envio do Código de Mineração em 2013, o foco da ação política nacional passou a ser a aprovação do mesmo com movimentações do setor empresarial junto ao Ministério de Minas e Energia (MME), Comissões e Parlamentares.

Na campanha de 2018, o atual Presidente da República teve como um dos focos de campanha a legalização da atividade garimpeira em áreas que possuem restrições. E ao receber um abaixo assinado solicitando ampliação de reserva garimpeira em Serra Pelada, para 500 hectares, afirmou que “o garimpeiro é um ser humano e não poder continuar sendo tratado como algo de terceira ou quarta categoria. Se Deus quiser, vamos buscar meios para que vocês possam trabalhar com dignidade e com segurança”. Além de receber o documento, o mesmo também sinalizou que iria rever demarcações de Terras Indígenas e Quilombolas, porque, segundo ele, são áreas que precisam ser “aproveitadas” economicamente e a permissão de posse de arma em áreas rurais, o que lhe rendeu apoios com os setores envolvidos nessas pautas.

Com objetivo de dar resposta a esse setor que o têm apoiado, principalmente na trincheira contra o meio ambiente e povos indígenas, o MME através da portaria 108, de 11 julho de 2019 criou o Grupo de Trabalho (GT) Sobre Garimpo. Ao qual finalizou seu trabalho de “consulta” aos garimpeiros em novembro do mesmo ano. Neste GT, os grandes grupos econômicos também foram escutados, para tentar conciliar os interesses dos garimpeiros e das grandes mineradoras.

Após um ano da finalização do Grupo de Trabalho, o governo Bolsonaro resolveu em meio a redução da base que o elegeu, publicizar o relatório apresentado. O conteúdo apresentado pelo relatório possui alguns pontos que nos parece ser inconstitucional e outros descabidos, como diria o ditado popular: passar o mel na boca da criança.

Iniciemos com a proposta inconstitucional, o relatório propõe a criação de Termo de Ajuste de Conduta (TAC) para atividades garimpeiras ilegais. A Lei 7347/85 que Disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (VETADO) e dá outras providências é citada pelo documento para que se observe os artigos 5º e 6º, o problema não é a indicação dos artigos, mas sim a premissa de que o “garimpo ilegal” se encontra como atividade legal e regular, tendo em vista que os TAC’s existentes são de atividades legais e regularizadas, mas que de alguma forma estejam infringindo a lei, diferentemente do garimpo ilegal. Além do TAC ter como prerrogativa a cessação da atividade que esteja cometendo crime ambiental, o que não tem sido a prática de muitas empresas de garimpos.

O descabimento não para por aí, em tópico sobre “máquinas e equipamentos no garimpo” é orientado que não haja mais queima de “máquinas, equipamentos e veículos utilizados na atividade garimpeira ilícita, tais como retroescavadeiras, pás-escavadeiras, tratores, dragas e motores de sucção etc.” contrariando o Decreto 6.514 de julho de 2008, que dispõe sobre as infrações e sanções administrativas ao meio ambiente, estabelece o processo administrativo federal para apuração destas infrações, e dá outras providências.  A qual em sua alínea V, do artigo 3ª aponta que as infrações serão punidas com destruição ou inutilização do produto.

Além disso, sobre a mesma temática o relatório propõe que os órgãos de fiscalização devam observar se os maquinários estavam registrados e cometendo o crime ambiental, bem como, caso seja comprovado, o Ibama tem que dar uma segunda chance aos garimpeiros, pois somente sendo reincidente o Estado “estaria autorizado a medida extrema pela autoridade fiscalizatória”.  Segundo matéria do The Intercept, de 27 de abril de 2020, as 72 máquinas destruídas no ano de 2019 estavam avaliadas em média por 500 mil reais. A pergunta que precisa ser feita é: quem são esses “garimpeiros” que possuem máquinas, equipamentos e toda estrutura que vai além desses valores?

O conteúdo do eixo sobre a “coexistência de áreas” é resultado de quem detém o controle da política mineral no país! Essa é a centralidade do conflito existente entre garimpeiros e grandes mineradoras, pois as mesmas fazem diversos requerimentos de pesquisa, lavra e se tornam possuidoras de inúmeros títulos minerários no território brasileiro (como reserva e ativo da empresa). Enquanto que o garimpeiro só pode regularizar a Permissão de Lavra Garimpeira (PLG) na localidade onde não houver qualquer tipo de requerimento anterior. Para resolver o conflito, o Governo de Jair Bolsonaro propõe que “havendo requerimento de PLG, será dada a oportunidade de o titular do direito minerário manifestar-se, no prazo definido, quanto ao interesse no aproveitamento de todo potencial mineral, hipótese em que, não se manifestando, poderá haver a concessão de permissão de lavra garimpeira”. Na prática, a proposta é continuar como está, porque nenhuma empresa grande que possui um título minerário irá abrir mão para atividade de garimpagem, sendo que o mesmo contribui na captação de recurso no mercado financeiro – a maior riqueza das mineradoras são os títulos minerários.

Para finalizar as questões emblemáticas que aparecem no relatório, é proposto que a Agência Nacional de Mineração (ANM) faça uma “readequação estrutural” para atender as necessidades da atividade garimpeira “tanto dos serviços das atividades burocráticas como os da atividade de fiscalização, e que poderiam até mesmo estarem vinculados a uma unidade exclusiva da ANM para tal finalidade”. Essa seria uma saída para o Estado brasileiro enfrentar de forma responsável os conflitos que existem, porém, sabemos que existe um sucateamento estrutural da ANM, desde o período em que era Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) para poder exercer suas atividades administrativas, mas sobretudo, as de fiscalização.

Mesmo após ocorrerem dois rompimentos de barragens de rejeitos, por falta de fiscalização e acompanhamentos adequados, a política adotada pelo Governo Federal foi de reduzir os recursos para fiscalização das barragens – na ordem dos 22% da verba para ANM. Também é reconhecido que o estado de Minas Gerais, possui mais de 400 barragens abandonadas, além das que se encontram em descomissionamento ou recebendo rejeitos, sendo o efetivo para fiscalização de 5 trabalhadores. Esse cálculo nos mostra que existe uma impossibilidade humana de fiscalização. O exemplo dado, serve para nos perguntarmos, de onde o governo retirará recursos para aumentar o efetivo da ANM que possa acompanhar de maneira adequada a fiscalização dos garimpos? Nos parece que é mais uma medida política de reorganização e sinalização para base garimpeira, do que efetivamente a alteração de regulação, controle e fiscalização dos conflitos que envolvem atividade garimpeira.

Voltemos a parte inicial do presente artigo onde nos questionamos a quem servirá as saídas apresentadas no Grupo de Trabalho sobre Garimpo do MME? Para nós, está evidente que é mais uma cortina de fumaça de regulação da atividade garimpeira, sem efetivamente enfrentar o problema existente. Além de em dois pontos centrais, favorecer as grandes mineradoras e as médias empresas mineradoras travestidas de Cooperativas Garimpeiras que possuem máquinas e estruturas que não correspondem as Cooperativas de garimpeiros familiares.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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