A violência, o medo de ser morto, o desmonte da fiscalização e a captura de todos os bens são quase generalizados na Amazônia. Indígenas denunciam que existe um projeto deliberado de Bolsonaro de desmonte das políticas de proteção aos índios e ao meio ambiente

Existe uma guerra invisível — aos olhos de quem não quer ver — em curso no Brasil, contra a maior floresta tropical do mundo, transformada na última fronteira de exploração do capital. Os assassinatos do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista Bruno Araújo Pereira denunciam o que não queremos enxergar — o permanente etnocídio contra os povos indígenas e a destruição da Amazônia, encurralada num país que não compreendeu os impactos globais de sua extinção, e de Jair Bolsonaro, que lidera um duro ataque contra a floresta, aqueles que vivem nela, e todas as pessoas que lutam para preservá-la.

  

A Terra Indígena Vale do Javari, nos municípios de Atalaia do Norte e Guajará, no Oeste do estado do Amazonas, onde Bruno e Dom foram assassinados, abriga o maior número de povos indígenas isolados conhecidos no planeta — 60 aldeias com cerca de 6 mil índígenas e mais 16 referências de índios isolados na região. O Vale do Javari também abriga o maior número de grupos indígenas isolados conhecidos em uma mesma Terra Indígena no Brasil, que corresponde a 36% dos registros confirmados de indígenas isolados no país. O Vale do Javari é território dos povos Kanamari, Kulina-Pano, Marubo, Matis, Matsés (Mayuruna), além dos povos Tyohom-dyapa e Korubo, de recente contato, e faz parte de um corredor binacional de áreas protegidas de 16,3 milhões de hectares na região de fronteira entre o Brasil e Peru.

 

De acordo com dados do relatório do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), o Vale do Javari possui mais de 8,5 milhões de hectares e uma das mais altas taxas de biodiversidade do mundo. O Vale do Javari detém também uma das importantes reservas da Amazônia, ouro, madeiras, entre tantos outros bens imensuráveis. A exploração econômica dos recursos naturais do Brasil não é recente, iniciou com o processo de colonização pelos portugueses, mas hoje encontra-se no seu estágio mais avançado.

Os assassinatos de Dom e Bruno acenderam um alerta sobre o fechamento do cerco contra os povos indígenas. 

“É em busca da extração dos bens da nossa floresta, visando a expansão do extrativismo minerário e do agronegócio, em um contexto de privatização crescente das terras públicas, que garimpeiros, fazendeiros, e madeireiros ameaçam os últimos indígenas isolados”, denuncia a antropóloga Helena Ladeira Azanha, da coordenação do Centro de Trabalho Indigenista (CTI).

Representações dos indígenas no Vale do Javari, servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai) em Atalaia do Norte, e órgãos responsáveis pela proteção ao meio ambiente ouvidos por essa reportagem são unânimes em apontar a política deliberada do governo de Jair Bolsonaro, de desmonte das estruturas de fiscalização na Amazônia como responsáveis pela guerra em curso que dizima os povos indígenas. Eles denunciam que não se trata de omissão, é um projeto de morte do atual governo que traz heranças da ditadura militar, e com viés de um falso nacionalismo e em nome do “progresso” espalham fake news, induzindo a sociedade a acreditar que os índios e as matas simbolizam o atraso econômico. “Por um lado, o governo finge proteger nossa floresta de outros países, de outro, entrega a mata à grilagem de latifundiários, ao garimpo, à pesca e à extração ilegal de madeira, incentivando a expansão de negócios predatórios na Amazônia,” afirma Beto Marubo, da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja).

Uma servidora da Funai em Atalaia do Norte, que não quis ser identificada, por medo de retaliações, contou que somente doze servidores atuam na Coordenação Regional da Funai na Terra Indígena Vale do Javari, e que muitos estão solicitando transferência, com medo de continuar na unidade. A única Coordenação Regional da Funai em Atalaia do Norte é responsável pelos 8,5 milhões de hectares, e está sem coordenador há meses. A Frente de Proteção Etnoambiental no Vale do Javari é vinculada à coordenação dos índios isolados e de recente contato da direção da Funai, em Brasília, e também não tem um coordenador no Vale do Javari, pois o último pediu exoneração do cargo, frustrado pela situação de abandono do órgão. A servidora informou que mesmo após os assassinatos de Dom e Bruno, não há patrulhas do exército na região, nem da Força Nacional, que é uma polícia vinculada ao Ministério da Justiça e que deveria fazer a segurança na região.

Não existe patrulhamento na região e nem policiamento. “Há mais de um ano não tem nenhuma ação de fiscalização para coibir os ilícitos no Vale do Javari. Desde que Bolsonaro assumiu a presidência, acreditamos que existe um ordenamento para que não seja feita fiscalização nas terras indígenas, ” declarou Beto Marubo. No Vale do Javari a violência, o medo de ser assassinado, o desmonte da fiscalização e a captura de todos os bens são quase generalizados.

A jornalista Eliane Brum que se transferiu de São Paulo para Altamira (PA) em 2017, para viver na Amazônia, disse em vídeo nas suas redes sociais que ela entende a Amazônia como o centro do planeta e que o primeiro caso de assassinato de um jornalista dentro da floresta é muito emblemático, pois demonstra que um limite foi ultrapassado na Amazônia. Ela observou que já ocorreram outros assassinatos de pessoas ligadas à imprensa, mas os mandantes sempre tiveram o cuidado de fazê-lo em contextos urbanos, para que os crimes não fossem ligados ao conflito de terra. É muito negativo para os negócios de grileiros, garimpeiros, madeireiros e narcotraficantes que atuam na Amazônia matar alguém com uma dimensão pública e internacional, fato que os criminosos aprenderam com o assassinato da Irmã Dorothy Stang, em Anapu, no sudoeste do Pará, em 2005, pois o crime contra uma mulher estrangeira, branca, chocou a opinião pública e atraiu olhares do mundo todo para a região.

Os assassinatos apontam para um descontrole na forma como o crime vem atuando na Amazônia, e evidencia várias questões: o avanço do narcotráfico que eleva a violência a um nível nunca visto antes, pois a Amazônia se consolidou como rota de escoamento do tráfico internacional de drogas devido à proximidade com Colômbia e Peru, países que são os maiores produtores mundiais de cocaína. Para o presidente da entidade Indigenistas Associados (INA), que representa os servidores da Funai e intervém na política indigenista, Fernando Fedola, o discurso de autoridades vão criando estímulo às atividades ilegais e sensação de impunidade dos criminosos. “O ex — ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, atuava abertamente para enfraquecer a fiscalização da Amazônia, o próprio presidente discursa contra a aplicação de multas ambientais, e como as reservas indígenas são espaços extensos, e com pouca fiscalização, os grileiros de terra vão entrando para dentro dessas terras,” apontou Fernando Fedola. Há forte presença do Estado na Amazônia, ao contrário do que muitos afirmam, de que o Estado está ausente na região. Porém, esse Estado foi corrompido e atua a favor de um governo de morte, que usa a máquina do Estado para abrir ainda mais a Amazônia à exploração.

Fernando Fedola observa que o assassinato de um jornalista branco, inglês, de um país rico, trouxe uma repercussão internacional ao caso, que infelizmente, não teria se fosse mais um indígena ou servidor da Funai assassinado. O coordenador da INA observa que o impacto da morte de Bruno e Dom gerou uma comoção, trazendo à tona essa problemática, que não se restringe ao Vale do Javari. Em setembro de 2019, outro servidor da Funai, Maxciel Pereira dos Santos, foi assassinado a tiros aos 35 anos em plena luz do dia na cidade de Tabatinga (AM). O medo de ser a próxima vítima tem sido o cotidiano dos indígenas em toda a Amazônia. Toda semana mulheres indígenas do povo Yanomani estão sendo estupradas, crianças morreram afogadas, mulheres e jovens indígenas estão se suicidando, e nada tem sido feito.

O desmonte da Funai

O procurador jurídico da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), Eliésio Marubo, lembrou que há anos os postos de controle da Funai sofrem ameaças e invasões de caçadores ilegais. Entre novembro de 2018 e setembro de 2019, o Funai em Atalaia do Norte, que busca controlar o acesso ao território Vale do Javari, foi alvo de oito ataques armados. “Quando o Estado deixa de atuar, abre espaço para o crime organizado,” denuncia Eliésio Marubo. Um governo de ultradireita que antes de assumir o poder já deixou claro como conduziria a política indigenista: ‘Se eleito, eu vou dar uma foiçada na Funai.’

Bolsonaro nomeou Marcelo Xavier para a presidência da Funai, que não é indigenista, mas delegado da Polícia Federal. Das 39 coordenações regionais da Funai em todo país, só duas têm servidores de carreira à frente. As outras 37 são comandadas por militares e policiais aposentados, que pouco ou nada conhecem sobre a proteção do meio ambiente e a defesa das populações tradicionais. Pastores, servidores e assessores anti-indígenas, também passaram a ocupar os cargos de coordenação da Funai e atuam de forma deliberada contra os direitos territoriais dos povos indígenas. Alguns chegaram a dar palestras para fazendeiros. Segundo Eliésio Marubo, a Funai passou também a editar medidas para impedir ações de defesa dos interesses indígenas, a propagar ameaças, e criminalizar comunidades que tomem a iniciativa de lutar pela terra.

A servidora da Funai em Atalaia do Norte contou que os poucos funcionários do órgão que sobrevivem ao medo e à frustração na Terra Indígena Vale do Javari, afirmam que Marcelo Xavier nunca esteve na região, nem mesmo após os assassinatos de Maxciel Pereira dos Santos, tampouco agora. Nem uma nota de pesar foi divulgada.

A Funai, que iniciou os trabalhos na região da TI Vale do Javari durante a ditadura militar, no início dos anos 1970, hoje mantém somente uma Coordenação Regional em Atalaia do Norte, responsável por cinco terras indígenas, com cerca de 6000 índios e uma Frente de Proteção Etnoambiental (FPE) na Terra Indígena Vale do Javari, que por sua vez é responsável por cinco bases dentro do território, localizadas nos rios Jandiatuba, Quixito, Figueiredo, Coari e Ituí-Itaquaí, a mais antiga e maior base do gênero do país, construída ainda nos anos 1990, logo após a demarcação da Terra Indígena. Apenas um servidor estava à frente da Proteção Etnoambiental e era responsável por toda essa região. Nos últimos seis anos, a frente nunca teve um coordenador efetivo, somente temporários.

 

A servidora da Funai no Vale do Javari contou que a Coordenação Regional da Funai em Atalaia do Norte está há quase um ano sem um coordenador titular. O ex — coordenador regional no município, o tenente da reserva do Exército, Henry Charlles Lima da Silva, sugeriu “meter fogo” em indígenas isolados do Amazonas, durante uma reunião com servidores e lideranças, e após a repercussão do caso, pediu exoneração. Segundo o servidor da Funai, a previsão é de que novamente um militar assuma a Coordenação Regional em Atalaia do Norte.

Além disso, há mais de um ano, a Coordenação Regional da Funai em Atalaia do Norte não tem um servidor para fazer a fiscalização territorial e monitoramento. Quem tem feito isso são os próprios indígenas organizados pela Unijava. Foram eles que identificaram a área onde Bruno e Dom desapareceram, e que passou a ser periciada por policiais.

Existe uma segunda Coordenação Regional da Funai na cidade de Tabatinga, mas é responsável pela região do Alto Solimões, no Amazonas, onde vivem aproximadamente 85 mil indígenas.  A situação de precariedade lá é a mesma do posto da Funai de Atalaia do Norte.

Bruno é mais uma vítima da guerra contra os indígenas e a Amazônia

O indigenista Bruno Pereira. Foto: Redes Sociais/Reprodução

 

Beto Marubo contou que era responsável por dar uma espécie de treinamento aos servidores que tomavam posse como indigenistas na Funai, e em 2010, quando passou no concurso, Bruno pediu pra ser lotado em Atalaia do Norte. Ao vê-lo pela primeira vez, Beto Marubo desconfiou que aquele “homem branco, muito alto, muito grande” não iria aguentar o treinamento. “Bruno não tinha o porte físico para a selva, mas tinha uma alma nobre. Ele chegou como aluno, mas depois virou um irmão”, contou Beto Marubo que não quis falar conosco na primeira semana, ainda muito abalado com a morte de Bruno, que transformou-se num amigo muito querido dos indígenas.

Bruno coordenou de 2012 até 2016 os trabalhos da Funai em Atalaia do Norte. Em 2019, após atuar numa operação que destruiu mais de 60 balsas de garimpo ilegal na Terra Indígena Vale do Javari, ele passou a ser perseguido dentro da Funai, e foi exonerado do cargo de Coordenador-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato no Vale do Javari. 

“Bruno continuava sendo servidor da Funai, mas decidiu se licenciar do órgão para continuar trabalhando na fiscalização do Vale do Javari em parceria com organizações indígenas,” contou Beto Marubo.

Escalada da violência contra os povos indígenas

Rafael Modesto, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), destaca que é possível observar essa escalada da violência contra os povos tradicionais a partir das publicações e relatórios de violência do Cimi, produzido anualmente, cujas fontes são as próprias comunidades indígenas, que preenchem as fichas. O relatório da Violência Contra os Povos Indígenas identificou que, em 2020, os casos de “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio” aumentaram em relação ao já alarmante número que havia sido registrado no primeiro ano do governo Bolsonaro. Foram 263 casos do tipo registrados em 2020 — um aumento em relação a 2019, quando foram contabilizados 256 casos, e um acréscimo de 137% em relação a 2018, quando haviam sido identificados 111 casos. Este foi o quinto aumento consecutivo registrado nos casos do tipo, que em 2020 atingiram pelo menos 201 Terras Indígenas, de 145 povos, em 19 estados.

A antropóloga Juliana Oliveira Silva, da Univaja/Opi (Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato) destaca que a política de povos indígenas isolados é central no Brasil, pois existem 114 registros em todo país, deles, 28 confirmados. A partir de 1987 foi adotada a política do não -contato, respeitando a determinação dos povos isolados. Porém, com o governo Bolsonaro, há uma fragilização dessa política e falta de fiscalização que resulta na crescente aparição de grupos isolados, após suas áreas serem invadidas por mega-obras de infraestrutura e empreendimentos extrativistas de petróleo e mineração. “No Vale do Javari, existe a presença de garimpo no rio Jutaí e rio Jantiatuba, durante a pandemia, missionários tentavam contatar ilegalmente os Korubo, há diversas invasões nos rios Ituí e Itaquai, próximo onde Dom e Bruno foram assassinados. Essa ruptura do isolamento é sempre traumática e pode acarretar no genocídio desses povos,” explicou Juliana Oliveira Silva.

A depreciação aos direitos humanos, e o amedrontamento vai minando a luta daqueles que, bravamente, ainda resistem ao cerco. Há dois anos Bruno Pereira falou sobre a política anti-indígena do governo Bolsonar ao site DW e do cerceamento: “A gente faz um concurso público, está com seu filho indo para a escola, eu tenho dois pequenininhos, mas ameaçado de morte e ameaçado pelo presidente da Funai que quer me processar. Sabe o terror? Isso vai te destituindo, vai aviltando nossas resistências. Estão matando nossos amigos. Isso tudo é reflexo desses caras, dessa política genocida.”

Apesar do medo, Bruno não desistiu. Ele compreendeu que o objetivo do governo Bolsonaro é desestruturar para aniquilar as resistências. Nas conversas com os entrevistados dessa reportagem, percebi a angústia, a frustração, o medo de ser assassinado. A guerra se instalou de forma tão cruel e brutal contra os povos indígenas que, por um momento, todos nos sentimos cansados da batalha.

O presidente da INA, Fernando Fedola, destacou que é preciso aumentar o número de servidores na Funai, mas só isso não adiantaria. “É necessário um conjunto de questões que precisam ser enfrentadas conjuntamente para enfrentar essa situação de insegurança de indígenas e servidores abandonados à própria sorte,” pontuou. Uma carta assinada pelos indígenas e enviada ao Congresso Nacional, exige um conjunto de medidas urgentes para proteção dos índios: a presença permanente da Polícia Militar Ambiental nas quatro Bases de Proteção Etnoambiental do Vale do Javari; a criação de uma Base de Proteção Etnoambiental da Funai no Rio Jutaí para impedir a entrada de balsas de garimpo e outros invasores; a criação de um Posto de Segurança Avançado em Atalaia do Norte (Polícia Federal, Força Nacional, Exército e Ministério Público) e reabertura de escritório do Ibama; a regulamentação do poder de polícia administrativo da Funai, entre outras medidas (Veja aqui a lista completa).

Uma Comissão Temporária Externa no Congresso Nacional, criada para investigar as causas do aumento da criminalidade e de atentados na Região Norte (CTENORTE) visitou o Vale do Javari no dia 30 de junho. Porém, de acordo com Eliésio Marubo da Univaja, até o momento, nada foi feito.

 

Parlamentares da Câmara e do Senado Federal recebem Carta com às reivindicações dos povos indígenas isolados do Vale do Javarí/AM (30/06). Foto: Roberto Stuckert

É preciso que a sociedade se mobilize e a opinião pública nacional e internacional pressionem o Brasil a exercer suas atribuições constitucionais para garantir a vida dos povos indígenas que optaram por viver em isolamento. É importante também demarcar novas áreas com presença de grupos isolados, combater o desmatamento e as invasões nesses territórios. Existe uma guerra contra os povos indígenas e a floresta, e nós precisamos resistir e lutar.

Marci Hences é jornalista no Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração

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