Por Bruno Milanez, Cristiana Losekann, Tatiana Ribeiro, Karine Carneiro e Manoela Roland[i]

Em 5 de novembro de 2018, o desastre causado pelas mineradoras Samarco, Vale e BHP Billiton completou três anos. Para além do maior desastre socioambiental do Brasil, esse também pode ser classificado como o mais longo do país: há três anos pessoas atingidas não têm uma renda digna, sofrem a angústia de não ter certeza se a água que bebem poderá lhes causar doenças no futuro e as que perderam suas casas estão vivendo em moradias temporárias, aguardando o reassentamento. Além disso, um número incontável de pessoas sofre de alcoolismo, depressão e angústia em decorrência dos impactos do rompimento, bem como da pressão resultante do processo de negociação pela reparação integral dos danos sofridos.

Distrito de Bento Rodrigues coberto de lama após colapso de barragem da Samarco, em Mariana 06/11/2015 REUTERS/Ricardo Moraes

Ao longo desses três anos, muito pouco foi efetivamente resolvido com relação ao desastre na bacia do Rio Doce. Por um lado, a narrativa do setor mineral, de que o “evento” foi algo isolado, impede que medidas de redução de riscos sejam tomadas. Por outro lado, os governos federal e estaduais lavaram as mãos de suas responsabilidades e deixaram que a Fundação Renova, criada pelas três mineradoras, determinasse quem são as pessoas atingidas, especificasse os termos das reparações, definisse o destino dos rejeitos espalhados e os termos dos convênios celebrados com universidades públicas, que restringem a autonomia dos cientistas na divulgação dos resultados obtidos em pesquisas.

No âmbito do Poder Judiciário, foi produzido um acordo (TAC-Governança) que, em certos aspectos, mais institucionaliza a mobilização popular do que estimula a participação da sociedade na construção de ações de reparação, mitigação e compensação. Tal acordo foi ainda consideravelmente piorado pela decisão discricionária de um juiz que, sem nunca ter visitado os territórios atingidos, incluiu na homologação do “Termo Aditivo ao TAP” (que também normatiza o processo de reparação) “ressalvas judiciais” que visam impedir a participação de pessoas ligadas a agremiações partidárias, ONGs e movimentos sociais/religiosos na execução do trabalho de assessoria técnica às pessoas atingidas.

A partir de tal constatação, devemos nos perguntar como foi possível chegar a tamanho controle privado sobre a vida das pessoas, dos territórios e das instituições. A resposta a essa questão passa pelas formas de atuação econômica e política das mineradoras no país, o que tende a ser agravado, a partir do próximo ano, em razão da predominância da agenda neoliberal como resultado eleitoral para a presidência da República e para os governos de Minas Gerais e Espírito Santo.

Para entender o cenário atual, devem-se considerar aspectos estruturais e conjunturais. Na perspectiva estrutural, é preciso esclarecer o modo como as grandes mineradoras atuam no Brasil. Em primeiro lugar, elas possuem capacidade de mobilizar grande quantidade de recursos financeiros, em algumas situações, superior ao orçamento dos municípios onde se localizam. Em muitos casos, a partir de “parcerias” com governos municipais, transformam essa capacidade em poder ideacional e imagético, na medida em que substituem o Estado (com a construção e reforma de escolas e hospitais, por exemplo) ou oferecem “voluntariamente” “benefícios” que são, na verdade, direitos (como saúde, lazer e cultura, por exemplo). Em alguns casos, os governos locais de cidades mineradas não têm capacidade de oferecer serviços públicos de forma adequada em razão das isenções fiscais concedidas às mineradoras (como a lei Kandir, que isenta do pagamento de ICMS os minerais exportados) e dos valores irrisórios recebidos a título de royalties. Por fim, as corporações garantem os seus interesses usando seus advogados para redigirem propostas legislativas para deputados federais e também oferecem cursos de direito mineral para juízes e outros servidores do judiciário.

Para além dessas questões estruturais, há ainda os aspectos conjunturais que favoreceram o cenário de desalento na bacia do Rio Doce. O rompimento da barragem de Fundão ocorreu em um momento particular da história política brasileira, pois em menos de um mês após o desastre, o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, acolheu a denúncia de crime de responsabilidade contra a presidenta Dilma, que resultou no seu impeachment. Esse fato trouxe à tona uma nova agenda para os movimentos sociais que, em grande parte, passaram a utilizar sua energia e capacidade de mobilização para contestar políticas retrógradas do governo Temer, incluindo a reforma trabalhista, a PEC dos gastos públicos e a tentativa de reforma da previdência.

Ao mesmo tempo, a sociedade brasileira passou por um aumento progressivo da polarização política e fortalecimento de posições de extrema-direita que favoreceram a naturalização de posturas racistas, misóginas, sexistas e individualistas. Enquanto isso, os rejeitos da Samarco seguiu impactando povos e comunidades de Mariana à foz do Rio Doce, com desproporcional efeito sobre a população negra e as mulheres. Ainda, na cidade de Mariana, a solidariedade às pessoas atingidas, demonstrada durante os primeiros meses após o rompimento, foi transformada em ressentimento e desprezo, já que passaram a ser consideradas como um impedimento à volta da geração de empregos pela Samarco.

Com as eleições sendo disputadas em um dos contextos mais acirrados dos últimos anos e com a propagação dos sentimentos de ódio e medo por parte dos candidatos de extrema direita, os diversos setores da esquerda, tradicionalmente engajados na defesa dos direitos das pessoas atingidas, passaram a se dedicar à agenda eleitoral. A vitória da candidatura de Jair Bolsonaro, declaradamente contrário à defesa dos direitos humanos, do meio ambiente e dos povos indígenas e quilombolas, dá ensejo a uma expectativa negativa para as pessoas atingidas, tanto em relação à defesa dos seus direitos socioeconômicos, quanto em relação à construção de soluções para problemas socioambientais enfrentados por elas. Ressalte-se que o caso específico do Rio Doce foi ignorado por todos os candidatos ao longo da campanha eleitoral, nenhuma atenção foi dada à contaminação do solo e do lençol freático, à exposição das comunidades atingidas a diferentes poluentes, nem ao seu adoecimento ou à desestruturação econômica e comunitária enfrentada por elas.

Em 2019, tanto o Brasil, quanto Minas Gerais e Espírito Santo terão novos governantes, cujos discursos propagam ameaças de criminalização e perseguição a militantes e ativistas de movimentos sociais, vulnerabilizando os principais grupos que acolheram e prestaram solidariedade às comunidades atingidas. Por fim, a agenda de aprofundamento de desmonte dos órgãos ambientais aumenta a chance de novos desastres socioambientais, como nos casos das mineradoras Hydro Alunorte (PA) e Anglo American (MG).

Tendo em vista esse cenário desfavorável, importante desafio está posto. Ele torna imperativa a rearticulação dos setores que militam em defesa dos direitos humanos e da natureza.

[i] Bruno Milanez (PoEMAS/UFJF), Cristiana Losekann (Organon/UFES), Tatiana Ribeiro (GEPSA/UFOP), Karine Carneiro (GEPSA/UFOP) e Manoela Roland (Homa/UFJF) integram a Rede de Pesquisa Rio Doce.

O Artigo foi originalmente publicado no Le Monde Diplomatique Brasil – dezembro/2018

 

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