“¿Por donde hay que empezar 

a empujar este país para llevarlo adelante?”

(Mafalda)

A derrota de Bolsonaro, apesar dos contáveis abusos e violências, na eleição de 30 de outubro é um alento para todos os que se preocupam com o respeito à dignidade humana e com a preservação ambiental no Brasil. Porém, apesar do respiro de alívio por saber que ele não ocupará mais a presidência, já é necessário pensar quais os próximos passos para se tentar reconstruir os cacos de país que serão entregues em janeiro de 2023. Aqui debatemos algumas ideias mais urgentes que tocam a questão mineral, organizadas “no calor da hora”. Outras propostas e estratégias deverão ser elaboradas e avaliadas à medida que a equipe do Governo Lula for sendo formada.

Primeiramente, é necessário pensar na fase de transição. O crime organizado e a mineração ilegal que tomaram conta da Amazônia, com a conivência do Executivo Federal, vão aproveitar os próximos dois meses de impunidade garantida para tentar rapinar o que for possível. É provável que haja o aprofundamento da violência contra os Povos Indígenas, em especial Yanomami, Munduruku e Kayapó, e um aumento da extração mineral ilegal em Unidades de Conservação, em especial no Pará, Rondônia, Roraima e Amapá. Nesse sentido, uma ação urgente seria ampliar nos próximos meses estratégias de monitoramento e denúncias contra essas ações. Neste esforço, seria fundamental exigir dos governos estaduais que cumpram seu papel de fiscalização dentro de suas competências.

Apesar do risco de algumas escaramuças golpistas até o final do ano, do ponto de vista institucional, as primeiras análise sugerem que o Legislativo Federal já aceitou a mudança de governo, com as principais lideranças reconhecendo a vitória de Lula e, possivelmente, traçando estratégias para continuarem influentes depois da transferência da faixa presidencial. Neste contexto, propostas polêmicas no Legislativo envolvendo o setor mineral parecerem pouco prováveis de serem aprovadas. Mesmo assim, será necessário acompanhar eventuais tramitações “de última hora”, de iniciativas que já foram iniciadas, como o PL 191/2020, que dispõe sobre a mineração em Terras Indígenas ou o Grupo de Trabalho da Câmara dos Deputados para revisão do Código da Mineração.

Considerando o caráter revanchista do governo Bolsonaro, é possível que ele ainda lance mão de medidas infralegais para continuar sua estratégia de “desconstruir muita coisa” em seus derradeiros dias de governo. Essa possibilidade também alerta para a necessidade de um monitoramento atento das medidas que serão editadas nestes dois meses por órgãos como Ministério de Minas e Energia (MME), Ministério do Meio Ambiente e suas respectivas agências. Nesse escopo, deve ser levado em consideração que o MME planeja concluir o Plano Nacional de Mineração 2050 até dezembro de 2022. Ou seja, o Brasil corre o risco de ser obrigado a herdar pelos próximos 25 anos um plano mineral orientado por princípios bolsonaristas.

Olhando para o ano que vem, o cenário também se mostra bastante desafiador.

Novamente, considerando a destruição que se ocorre nos territórios, em particular na Amazônia, a reestruturação das agências de fiscalização se mostra urgente. Além de reequipar e ampliar o contingente de funcionários do Ibama, ICMBio, Funai, Fundação Palmares e Incra, será fundamental, ainda no primeiro ano de governo, iniciar a retirada de garimpeiros e mineradoras ilegais de Terras Indígenas e demais áreas protegidas. Para tanto se faz necessária a revogação dos Decretos que reduziram a capacidade do Estado de aplicar multas por crimes ambientais. Da mesma forma, é essencial a restauração dos poderes de inibição de tais crimes que foram retirados por Bolsonaro, como a possibilidade de inutilizar maquinários ilegais.

Somente iniciativas dessa natureza mostrarão o real compromisso do novo Governo com os Povos Indígenas, mesmo que para isso tenha que ir de encontro a interesses políticos e econômicos, locais e nacionais. Além disso, a referidas medidas são fundamentais para impedir o crescimento do poder de grupos de narcotraficantes e facções criminosas, que passaram a operar na extração de minérios.

No âmbito da elaboração e de políticas públicas, a frente ampla que foi necessária para derrotar Bolsonaro acabou por trazer para o futuro Governo Lula uma gama bastante diversa de interesses. Haverá uma série de expectativas e cobranças de diferentes grupos que, em muitos casos, tentarão limitar políticas voltadas para a proteção dos povos tradicionais e dos direitos territoriais. Mais do que isso, mesmo no campo progressista, muitas das propostas desenhadas para a América Latina olham para um modelo de crescimento centrado na exploração intensiva de recursos naturais (terra, água e minério) e sua transformação parcial para fins de exportação. É preciso estarmos atentos para que o próximo governo não caia nessa armadilha e repita os mesmos erros que levaram à reprimarização da economia brasileira.

A cultura de permanente ampliação acelerada da extração mineral que se consolidou no MME e na Agência Nacional de Mineração (ANM) dificilmente será modificada no curto prazo. Contudo, de saída, será preciso revogar as medidas de “guilhotina regulatória” que impuseram celeridade aos procedimentos na ANM, com risco de comprometimento do rigor das análises técnicas. Também, a experiência recente mostrou a inviabilidade da adoção do “princípio da boa fé” no monitoramento das atividades extrativas, o que torna essencial a intensificação da fiscalização in loco das atividades minerárias.

Do ponto de vista do Legislativo Federal, a eleição de vários apoiadores de Bolsonaro criou uma situação bastante preocupante. Virou lugar comum afirmar que “temos o Congresso mais conservador da história”, mas uma análise do quadro eleitoral sugere que essa máxima continuará válida. Para além da questão numérica, esse será um Congresso Nacional mais radicalizado à direita. Uma mudança particularmente importante se deu no Senado Federal, que, ao longo dos últimos anos, serviu de freio para muitos dos retrocessos propostos pela Câmara dos Deputados. Na nova configuração, é possível que grupos vinculados a diferentes segmentos do setor mineral, garimpeiros ou ligados às grandes mineradoras, tentem avançar sua pauta no Legislativo, atuando à margem do Poder Executivo.

Dado esse contexto, estratégias de aprofundamento da democracia e intensificação da participação popular parecem ser necessárias para tentar avançar a construção de um outro modelo mineral nos próximos quatro anos. Como disse o Presidente Lula, em seu discurso na noite de sua eleição, essa deve ser uma “vitória do povo brasileiro e da democracia”.

Uma medida essencial já no primeiro ano de governo será a reestruturação dos Conselhos Nacionais. Bolsonaro, na tentativa de centralizar o poder, esvaziou ou extinguiu centenas de espaços de participação social. Eles precisam ser retomados e aprimorados, para garantir um maior envolvimento da população. No caso específico do setor mineral, vale lembrar que este ano foi criado o Conselho Nacional de Política Mineral. Apesar de sua atual configuração nada participativa, este Conselho pode ser reformulado, sendo um potencial fórum para que trabalhadores, comunidades atingidas, povos tradicionais, organizações ambientalistas e órgãos setoriais, como Incra, Funai, ICMBio e Fundação Palmares, tenham participação efetiva e influenciem políticas setoriais que garantam a proteção dos direitos sociais, trabalhistas e territoriais.

Outra estratégia de intensificação da participação popular na formulação de políticas públicas no setor de mineração deve ser a organização de um ciclo de conferências populares (municipais, estaduais e nacional), visando a construção da Primeira Conferência Nacional de Mineração. Esta Conferência é uma demanda antiga de sindicatos de trabalhadores e dos movimentos populares. A possibilidade de retomada das Conferências Nacionais foi explicitamente mencionada pelo presidente Lula em 30 de outubro. Portanto, a realização desta Conferência, o adiamento da conclusão do Plano Nacional de Mineração Brasil 2050 e a vinculação de tal Plano às recomendações da Conferência Nacional deveriam estar no horizonte estratégico das entidades e movimentos que debatem o modelo mineral brasileiro.

Em resumo, a eleição de Lula interrompe o consentido processo de destruição ambiental, violação de direitos, crimes e espoliação de riquezas que marcou o governo Bolsonaro. Porém, a herança de desmonte institucional e a cultura de violência e ilegalidades resultantes dos últimos quatro anos de desgoverno indicam que o futuro será ainda muito desafiador. Da mesma forma, o contexto institucional que se configura para o próximo governo indica que haverá muitas pressões sobre o Executivo e pouco espaço de negociação dentro do Legislativo Federal. Assim, a estratégia que se mostra necessária e urgente para reformular o modelo mineral brasileiro é o aprofundamento da democracia e a retomada da participação popular direta na formulação das políticas para o setor.

Comitê Nacional em Defesa dos Territórios frente à Mineração

Movimento pelas Soberania Popular na Mineração – MAM

Justiça nos Trilhos – JNT

Poemas – Grupo Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade

 
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