A análise dos efeitos da não paralisação da atividade mineral no Brasil durante a pandemia da Covid-19 é fundamental para alcançarmos a necessária responsabilização tanto das empresas, por permaneceram em atividade expondo seus trabalhadores e trabalhadoras, como do Governo Federal, que decretou a essencialidade do setor e foi conivente com a mineração ilegal. O presente estudo é uma contribuição do Comitê Nacional em Defesa do Territórios Frente à Mineração, no âmbito do Observatório dos Conflitos da Mineração. O Observatório objetiva sistematizar, mapear, contabilizar e dar visibilidade aos diferentes tipos de conflitos socioambientais e violações de direitos humanos provocados pelo setor mineral e promover estudos que contribuam para a construção da crítica ao modelo mineral brasileiro.
O presente estudo, portanto, investiga os efeitos do permanente funcionamento da mineração durante a pandemia da Covid-19, no ano de 2020 e no início de 2021. Essa pesquisa foi desenvolvida no decorrer da epidemia no Brasil, que, infelizmente, ainda não terminou. Portanto, os textos que compõem essa publicação se referem a períodos específicos da conjuntura sanitária, social e econômica de um processo em curso. Além disso, todos os levantamentos foram realizados de modo remoto, utilizando-se de dados secundários oferecidos pelo poder público e informações disponíveis na mídia. Pesquisas in loco, se possível, teriam dado ainda mais substância empírica ao estudo; todavia, se mostraram inviáveis pela própria vigência da pandemia.
Apesar disso, consideramos oferecer uma importante contribuição que vem a se somar aos estudos já publicados que denunciam as implicações da narrativa referente à essencialidade da mineração e o caráter perverso da política adotada pelo Governo Federal de permitir a livre circulação do vírus, possibilitando a maior e acelerada disseminação do coronavírus no Brasil, mesmo contra a recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS) e dos especialistas (BARBOSA; ABREU; SIQUEIRA, 2021; CASTRO et al., 2020; DA SILVA; ANTONINO, 2020; MILANEZ; MOURA: CHAMMAS, 2020; MALHEIRO; MICHELOTTI; SABINO, 2020; REYMÃO; KOURY; FERREIRA, 2020; ROCHA; PORTO, 2020). Tal política vem produzindo efeitos trágicos para toda a população, resultando em mais de 500 mil mortes, em julho de 2021, e apresenta desdobramento ainda mais cruel e acentuado sobre os grupos mais vulneráveis, como os indígenas.
Desde o início da epidemia da Covid-19, as grandes mineradoras adotaram um discurso político que enquadrava sua atividade como essencial. Consideram-se no mesmo patamar daquelas atividades que caso fossem paralisadas trariam consequências negativas para o funcionamento da vida coletiva, sendo impensável, assim, a sua interrupção. O Governo Federal por meio da Portaria nº 135/GM do Ministério de Minas e Energia (MME) e do Decreto nº 10.329/2020, endossou o discurso empresarial da essencialidade. As mineradoras e o governo federal utilizaram como justificativa a noção de que as atividades minerárias eram fornecedoras de insumos para as demais indústrias do país, inclusive aquelas ligadas ao setor de saúde e de produção de alimentos (AZEVEDO, 2020; MME, 2020; OLIVEIRA, 2020).
Não obstante, a característica da mineração de grande escala, que hoje opera no Brasil, está majoritariamente voltada para o mercado externo. Porém, para as mineradoras e mesmo para os governos seria demasiado forçado declarar que a exportação de minério seja uma atividade essencial. No entanto, mesmo a justificativa na demanda interna é falaciosa, tendo em vista a retração inicial da produção nacional com o fechamento das indústrias transformadoras para promover o isolamento social e o lockdown.
A essencialidade forjada demonstra, por um lado, o poder político das mineradoras e a eficiência de seu lobby; por outro, o caráter neoextrativista da economia brasileira, intensamente dependente da extração mineral para exportação e do bom rendimento das mineradoras nacionais no mercado financeiro. As mineradoras, por sua vez, intensificaram suas estratégias de marketing corporativo não só para construir uma percepção de essencialidade, mas também para valorizar a “solidariedade” empresarial, em forma de doações em dinheiro, equipamentos hospitalares, testes e outros tipos de bens de primeira necessidade na pandemia. A grande mídia, com isso, teve um papel central na construção do imaginário das corporações extrativas como benfeitoras e socialmente responsáveis. No entanto, o presente estudo se propõe a desconstruir essa falácia.
Em resposta à manutenção do funcionamento da mineração, a sociedade não se silenciou. Em escala global, o estudo “Vozes da Terra: como a indústria da mineração global está se beneficiando da pandemia de Covid-19” (EARTHWORKS et al., 2020) demonstrou como as estratégias utilizadas pelas corporações mineradoras no Brasil emulavam iniciativas que vinham sendo adotadas em vários outros países de economia neoextrativista. No Brasil, destacamos a campanha “Mineração não é essencial, a vida sim!”, encampada por mais de 100 organizações, mas também, diferentes mobilizações de sindicatos e ações civis públicas, impetradas pelos Ministérios Públicos, visando a paralisação da mineração em diferentes localidades.
As contribuições desta publicação estão divididas em quatro estudos diferentes que: i) desmascaram o caráter da essencialidade da mineração e a centralidade na manutenção dos lucros; ii) apresentam os reflexos da manutenção da atividade mineral sobre a exposição dos trabalhadores do setor e seus familiares; iii) explicitam as precárias condições sociais e sanitárias dos municípios minerados, a maioria explorados há décadas, para responderem efetivamente à epidemia e à propagação do vírus; e, por fim, iv) demonstram a relação entre as regiões onde a mineração e o garimpo operam na Amazônia e o avanço da Covid-19 sobre os povos indígenas. Abaixo destacamos os principais pontos e descobertas dos estudos contidos nesta publicação.
- Essencialidade forjada pelo setor mineral, mesmo com a retração do consumo de minérios.
A essencialidade do setor mineral durante a pandemia foi forjada pelas organizações representativas de classe da mineração e por meio de pressões sobre o governo federal para inclusão em portaria ministerial e posteriormente em decreto presidencial. Com a retração da economia mundial e brasileira, o consumo nacional de energia elétrica caiu 11%, a diminuição no valor exportado de bens transformados foi quase de 20%, a produção de automóveis teve uma redução, 99,5%, de fevereiro a abril de 2020, e de aproximadamente 30% do consumo de aço, no mesmo período.
- Manutenção das exportações de minérios apesar da queda dos preços.
Mesmo com a maior parte dos minérios sofrendo redução de preços no início da pandemia, quando foi decretada a essencialidade da mineração pelo governo federal, o volume exportado dos principais minérios teve redução módica, -8,8% para o ferro, -3,7% para o cobre e -5,3% para o ouro; algumas exportações, como de níquel e de outros minérios, tiveram crescimento até agosto de 2020.
- Lucro das mineradoras cresceu durante a pandemia.
Em 2020, o faturamento total do setor extrativo mineral brasileiro foi de R$ 209 bilhões, um aumento de 36% em comparação aos R$ 153 bilhões faturados em 2019. Tais ganhos estão associados à manutenção das atividades do setor extrativo mineral, ao aumento dos preços dos minérios a partir do segundo semestre de 2020 e à constante desvalorização do real. Os estados que mais contribuíram para a alavancagem do faturamento foram Pará e Minas Gerais, com faturamento de R$ 97 bilhões e R$ 76,4 bilhões, respectivamente. O pagamento de R$ 12,4 bilhões em dividendos da Vale S. A., em 2020, representa mais de 10 meses de auxílio emergencial de R$ 600 para 2,06 milhões de brasileiros ou atenderia 20,6 milhões de brasileiros por um mês, quase 10% da população.
- Filantropia irrisória frente aos lucros das mineradoras.
As doações das mineradoras, avaliadas em R$ 900 milhões em julho de 2020, representaram 1,2% do faturamento do setor apenas no primeiro semestre daquele ano; isso seria equivalente a R$ 12,54 da renda de um trabalhador assalariado que recebe um salário-mínimo. O valor doado pelo setor para combate à Covid-19 corresponde a 2% do lucro líquido das grandes mineradoras, declarados em 2019; a 3% do valor de dividendos repassado aos acionistas em 2019; e a 78% da remuneração anual paga em 2019 aos diretores das empresas
- Com altos lucros, empresas do setor extrativo mineral e associadas demitiram trabalhadores e a Vale S. A. elevou o grau de terceirização.
A retração da economia provocou ameaças de demissões, que, em grande parte, foram efetivadas em diversas regiões do Brasil. No caso das empresas cujas cadeias produtivas estão diretamente ligadas ao setor extrativo mineral, ao invés de garantir a permanência segura e remunerada de seus trabalhadores em casa, a opção foi outra: a precarização das relações de trabalho ou a demissão. No Brasil, a empresa saltou de 57.388 terceirizados em 2019 para 90.877 em 2020.
- Os trabalhadores do setor ficaram mais expostos a contaminações e a óbitos pela Covid-19.
Os trabalhadores do setor, em especial os que exercem funções a nível operacional, foram os mais vulnerabilizados, pois o home office foi implementado principalmente para os cargos de escritório, permitindo aos gerentes e diretores que trabalhassem em segurança em suas casas. Devido à gravidade, sindicatos da categoria buscaram a paralisação das atividades do setor junto às empresas e, também, um maior empenho na proteção dos trabalhadores.
- Empresas do setor extrativo mineral brasileiro foram alvo de denúncias e ações judiciais para impedir o alastramento da doença entre os trabalhadores.
Os escritórios da Justiça do Trabalho em Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso tentaram fechar complexos mineradores que ameaçavam a saúde dos trabalhadores e da população municipal, mas tiveram suas decisões derrubadas. A Vale S. A. expôs cerca de 5 mil trabalhadores à Covid-19 em Itabira (MG) e em Ouro Preto (MG). Em Congonhas (MG), a CSN Mineração S. A. expôs cerca de 6 mil trabalhadores. Na empresa Pilar de Goiás Desenvolvimento Mineral S. A., em Uruaçu (GO), os trabalhadores também foram expostos à doença. A Nexa Resources, além de expor cerca de 1.500 trabalhadores à contaminação pela doença, também foi acusada de esconder casos de contaminação por Covid-19 entre os funcionários da empresa nas obras da mina subterrânea no complexo de Aripuanã (MT).
- Há elevada taxa de contaminação e de mortes por Covid-19 nos municípios onde a mineração continuou.
Em municípios onde a mineração foi mantida, registram-se taxas elevadas de contaminação e de morte por Covid-19. As taxas de óbito, por 100 mil habitantes, em cidades majoritariamente influenciadas pela atividade mineral como: Juriti (PA) (122,12), Canaã dos Carajás (107,60) e Itaituba (PA) (95,67) superaram a da cidade de São Paulo (90,81), considerada o epicentro da pandemia no primeiro semestre de 2020.
- Faltam infraestrutura e profissionais da saúde para enfrentar a pandemia em municípios com altas arrecadações de royalties da mineração.
Mesmo no contexto de crise sanitária com a circulação do vírus, em muitos municípios, expressivos arrecadadores da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM), como é o caso de Juruti e Oriximiná, no Pará, e de Conceição do Mato Dentro e São Gonçalo do Rio Abaixo, em Minas Gerais, onde não há qualquer leito de UTI. Da mesma forma, destaca-se o número reduzido de médicos em 92% das cidades da amostra, que estão com taxas abaixo da média nacional de médicos por mil habitantes. Mariana (MG), Presidente Figueiredo (AM), Itabirito (MG), Canaã dos Carajás (PA) e Brumadinho (MG) não instalaram qualquer UTI a mais; Juazeiro (BA), Mariana (MG) e São Gonçalo do Rio Abaixo (MG) perderam médicos durante a pandemia. Alto Horizonte (GO), Arroio dos Ratos (RS), Godofredo Viana (MA), São Gonçalo do Rio Abaixo (MG) e Treviso (SC) continuaram até mesmo sem leito de internação.
- Os municípios minerados da Amazônia possuem as piores condições de serviço público e foram os mais afetados pela pandemia.
Todas as cidades amazônicas da amostra estão abaixo da média nacional de domicílios urbanos com rede geral de abastecimento de água e esgotamento sanitário adequado. Das 895 mortes por Covid-19 até 26 de agosto de 2020, considerando os 25 municípios da amostra, 646 ou 72,2% ocorreram na Amazônia.
- Os povos indígenas da Amazônia apresentam altos índices de contaminação pela Covid-19
Os 15 dos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) mais atingidos, proporcionalmente pelo contágio da Covid-19 situam-se, inteira ou parcialmente, na Amazônia. Os índices percentuais de contaminação da população indígena nos DSEI mais problemáticos são muito superiores aos da média nacional. De 4,5% da população comprovadamente contaminada, três DSEIs da Amazônia chegam a superar os 19% de população indígena contaminada e outros seis possuem mais de 10% da população já diagnosticada com a doença. Na maioria deles há presença de garimpo ou de mineração atuando nas TIs ou em seu entorno.
- Indícios mostram uma forte correlação entre o avanço da Covid-19 e a existência de garimpos ilegais ativos em TIs.
Entre os dez DSEIs mais atingidos, proporcionalmente pela contaminação da Covid-19, oito registram ocorrências de garimpo ilegal em TIs, sendo seis desses DSEIs, com atividade garimpeira intensa ou de média intensidade. O garimpo ilegal em TIs vem atuando como vetor de propagação da Covid-19 entre os povos indígenas. No DSEI Altamira, onde existem alguns garimpos em funcionamento, mais de 25% dos indígenas já contraíram a Covid-19. Entre os Kayapó do Pará, com a mineração e garimpos operando intensamente, mais de 20% adoeceram, situação similar aos Kayapó do Mato Grosso, onde o garimpo aumentou significativamente nos últimos anos. O DSEI Leste de Roraima apresenta, em números absolutos, o segundo maior número de contágio pela Covid-19, com 3.748 casos. Nesse DSEI, está localizada a RI Raposa Serra do Sol, onde, desde dezembro de 2019, as invasões garimpeiras ganharam escala.
- Povos indígenas realizaram uma série de medidas de autodefesa como barreiras, bloqueios, protestos, manifestos e expulsão de invasores, inclusive de garimpeiros.
Em 2020, foram registrados 18 conflitos entre indígenas, garimpeiros e mineradoras que tiveram a Covid-19 como elemento de preocupação e de denúncia. Dentre esses conflitos, sete ensejaram reações diretas dos povos indígenas. Na RI Raposa Serra do Sol, os indígenas das etnias Waimiris-atroaris e os Turedjam Kayapó expulsaram garimpeiros de suas terras. Os Yanomamis e os Mundurukus, da TI Sai Cinza e da TI Munduruku, denunciaram, publicamente, em campanhas, cartas abertas e petições a órgãos nacionais e internacionais, os danos e perigos do garimpo para o avanço da Covid-19. Além desses, os Xikrin do Cateté, os Munduruku e os Kayapó da TI Menkragnoti, realizaram manifestações e bloqueios de vias exigindo ação do poder público contra a invasão e efeitos da mineração e dos garimpos em seus territórios.
Desse modo, a presente publicação é integrada por quatro textos. A primeira investigação “Mineração no contexto da pandemia da Covid-19 no Brasil: aspectos institucionais e corporativos”, de Marcos Cristiano Zucarelli, foi concluída no final de 2020 e desvenda os falsos discursos da essencialidade do setor mineral, das ações filantrópicas das mineradoras e da possibilidade de crescimento econômico a partir da mineração.
Em franco diálogo com essa discussão, no trabalho “As condições de trabalho na mineração durante a pandemia da Covid-19 no Brasil” de Michelle Cristina Farias, finalizado em abril de 2021, a autora atualiza uma análise dos elevados lucros do setor mineral, que não parou durante a pandemia. Ainda, analisa a vulnerabilidade e a precarização das condições de trabalho na mineração e também as medidas judiciais para tentar proteger os trabalhadores durante a pandemia.
Em seguida, apresentamos outro texto de Marcos Cristiano Zucarelli, “A situação dos municípios minerados no contexto da pandemia da Covid-19 no Brasil: aspectos de saúde e desenvolvimento social”, onde o autor traz uma análise comparativa entre 25 principais municípios minerados do Brasil, considerando a diversidade regional, identificando suas condições sociais e estruturais para enfrentar a epidemia Covid-19, além dos efeitos da doença nas municipalidades.
Para finalizar, no texto “Minérios que carregam o vírus na Amazônia: garimpo ilegal e mineração com vetores de propagação da Covid-19 sobre Povos Indígenas”, Michelle Cristina Farias e Luiz Jardim Wanderley demonstram como a mineração e, principalmente, o garimpo ilegal, com a conivência do Estado, foram as atividades que intensificaram a propagação do coronavírus nas aldeias e resultaram no grande número de indígenas contaminados e mortos. Neste último trabalho, para além das denúncias, os autores também destacam as ações de resistência dos indígenas.
Acesse material completo: Publicação: Mineração e Covid-19
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