A falta de protagonismo do MME nas ações sobre os conflitos gerados pelo garimpo ilegal na TI Yanomami evidencia que o governo defende interesses contraditórios.  

Desde o ciclo do ouro, dos diamantes, do ferro, a busca por minérios no Brasil, sob uma lógica colonial predatória e violenta, produziu profundos impactos e moldou a história do país. Essa forma de expropriação da terra perpassou os séculos, e adquiriu novas modalidades, mas nunca cessou, tanto que “as veias abertas da América Latina estão expostas, desde a invasão dos colonizadores, em Potosí, até hoje”, escreveu Eduardo Galeano em 1970.

No século 21, com a mudança climática e a transição energética, em um mundo que será mediado pelo digital e habilitado para tecnologia, a crescente demanda global por minerais críticos deverá nortear a política de diversos países. A Amazônia, última fronteira natural – quando todos os demais biomas brasileiros já foram devastados – com alto potencial de elementos de terras raras e minerais estratégicos, está no centro dessa disputa.

Algumas matérias-primas minerais possuem grande importância econômica e, por isso, correm risco de suprimento, atualmente, elas são definidas como “críticas” por muitos países. No Brasil, o conceito “estratégico” foi adotado, de certa forma, para ampliar o rol de minérios a serem beneficiados por políticas públicas e legitimar quase toda mineração em grande escala.

Os minerais críticos – cobalto, lítio, níquel, nióbio, entre outros – são utilizados para construção de dispositivos de alta tecnologia e tecnologia de energia verde. O estudo Minerals for Climate Action: The Mineral Intensity of the Clean Energy Transition, produzido pelo Banco Mundial destaca que para atender à crescente demanda global por tecnologias de energia verde – incluindo uma mudança maciça para baterias elétricas – serão necessários 3 bilhões de toneladas de minerais estratégicos críticos até 2050.

A ampliação de projetos de produção de minerais para o aumento das exportações no País foi amplamente defendida pelo governo Bolsonaro. Entretanto, é preciso lembrar que a contribuição da atividade é insignificante para a economia nacional e, de acordo com o Ministério de Minas e Energia (MME), equivaleu a apenas 0,64% do PIB em 2018.

Além disso, a mineração é uma atividade violenta e deixa um rastro de destruição, desmatamento, pilhas de resíduos e, eventualmente rejeitos tóxicos. Um exemplo emblemático da condução inadequada do processo de exploração mineral foi o trajeto de lama deixado pela Samarco e a Vale S.A. nos rios Doce, até o Espírito Santo, e Paraopeba, em tragédias que atingiram as cidades de Mariana e Brumadinho/MG.

Um relatório produzido pelo grupo técnico de Minas e Energia da Comissão de Transição Governamental 2022 apontou ações e medidas prioritárias para resolução de questões graves do setor no país. Entretanto, cerca de seis meses após a posse, o governo Lula não definiu uma política para reverter esse quadro do setor mineral, e o Ministério de Minas e Energia (MME) mantém as estratégias do governo anterior. A forma como o Brasil enfrentará essas questões e buscará respostas emergentes para os problemas provocados pela mineração definirá o futuro da Floresta Amazônica e dos povos originários e do país.

A herança de Bolsonaro de desmonte na política ambiental

Devido à sua vasta extensão e solo, o Brasil possui grandes reservas de minerais críticos altamente valiosos. Cerca de 94 % do nióbio do mundo, usado para produção de ligas especiais de aço; 32,3 % do manganês mundial, 25,9% de todo o grafite; e 18,3% das reservas conhecidas de minerais de terras raras. Mas, apesar do Brasil ser um país marcado pela mineração, o enfrentamento necessário aos impactos gerados por essa atividade tem sido sistematicamente negligenciado. Não há um debate das instituições sobre a política mineral para diminuir os impactos/danos que a mineração causa e os conflitos decorrentes.

A Política Pró-Minerais Estratégicos de Bolsonaro foi instituída por meio do Decreto nº 10.657, de 24 de março de 2021 e deu seguimento à política de Michel Temer. O Decreto também instituiu a criação do Comitê Interministerial de Análise de Projetos de Minerais Estratégicos (CTAPME). O Comitê analisaria os projetos apresentados pelas mineradoras e daria apoio aos processos de licenciamento ambiental. Na prática, a política Pró-Minerais Estratégicos, adotada no governo Bolsonaro, servia como instrumento para as grandes corporações da mineração acelerarem o licenciamento de projetos para extração de minerais que apresentassem impactos significativos sobre o meio ambiente, povos tradicionais/indígenas, patrimônio histórico ou assentamentos de reforma agrária.

O discurso de Bolsonaro e seus aliados a favor de qualquer forma de mineração fortaleceu ainda mais o lobby do setor, tanto da mineração de grande porte, quanto de representantes do garimpo, que enraizaram sua influência corporativa nos três poderes da República: Executivo, Legislativo e Judiciário. Esse mecanismo sofisticado de lobby de empresas, organizações e associações ligadas ao setor mineral, tais como do Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM), da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa Mineral (ABPM), entre outras instituições, contribuíram para fortalecer as pautas de parlamentares eleitos em 2022 que atendem os interesses do setor. Com mais poder para intervir, diversos segmentos da atividade minerária têm se organizado para ampliar sua influência sobre órgãos reguladores e formuladores de políticas públicas.

O relatório “Dinamite Pura: Como a política mineral do governo Bolsonaro (2019-2022) armou uma bomba climática e anti-indígena”, lançado no final de março de 2023 pelo Observatório da Mineração e Sinal de Fumaça (Monitor Socioambiental), concluiu que: a crise humanitária na Terra Indígena (TI) Yanomami; a ausência de fiscalização de barragens; a falta de controle generalizado do uso de terra para empresas de mineração e a flexibilização das normas legais sobre mineração e meio ambiente, são as consequências diretas dessa política de desprezo aos direitos humanos e territoriais implementada no governo Bolsonaro.  

Por outro lado, até o momento, pouco foi realizado pelo governo Lula para reverter a política mineral de Bolsonaro. A própria portaria que criou a Política de Apoio ao Licenciamento Ambiental de Projetos de Investimentos para a Produção de Minerais Estratégicos continua efetiva, apesar das recomendações do grupo técnico de Minas e Energia da Comissão de Transição Governamental 2022. O relatório, apresentado em dezembro de 2022, apontou medidas urgentes para a resolução de questões graves do setor mineral no país.

A relação do Ministério de Minas e Energia, sob o terceiro governo Lula, com as empresas mineradoras e grandes corporações transnacionais, também mantém os acenos do governo Bolsonaro ao setor. Em março (2023) o MME, o Serviço Geológico do Brasil (SGB), e a Agência Nacional de Mineração (ANM) enviaram representantes ao PDAC (Prospectores & Development Association of Canada) – maior evento de mineração do mundo, realizado anualmente em Toronto, no Canadá. O evento reúne grandes empresários do ramo de mineração e setor público para debater as perspectivas globais do setor, e é também uma plataforma para negociações do setor mineral.

Para o professor do Departamento de Engenharia de Produção e Mecânica, e do Mestrado em Geografia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), e coordenador do Grupo de Pesquisa e Extensão Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade (Poemas), da UFJF, Bruno Milanez, o MME precisa pensar políticas para “reduzir os conflitos e impactos negativos que a mineração tem causado às comunidades, à natureza e à economia”.

Nesse sentido, uma das ações urgentes que o MME deve reverter é a política para os minerais estratégicos instituída por Bolsonaro, defende Bruno Milanez. Segundo ele, as mudanças realizadas no setor mineral “enfraqueceram ainda mais o frágil sistema de licenciamento, monitoramento e controle dos impactos ambientais e sociais causados pela extração mineral no país”.

Questionada sobre a política para os minerais estratégicos, a Secretaria de Geologia, Mineração e Transformação Mineral (SGM) do Ministério de Minas e Energia respondeu, em nota, que “o objetivo da iniciativa foi de garantir o suprimento interno de bens minerais dos quais o País hoje é fortemente dependente de importação, consolidar e manter status de grande produtor e/ou exportador de determinados bens minerais e permitir que o Brasil ocupe espaços e conquiste posições de liderança global em novas cadeias minerais que apresentam previsão de forte crescimento de demanda.”

A nota diz ainda que “frente à demanda crescente pelos minerais para transição energética e agrominerais, a SGM entende ser recomendável desenvolver ações que apoiem o setor mineral na produção desses bens minerais. A Política Pró-Minerais Estratégicos pode ser um eficiente instrumento para este fim”.

No entanto, vale lembrar que entre os projetos apoiados pelo MME, há alguns que incorporam metais que são relevantes para a pauta exportadora, mas não tem relação com a “transição energética” ou “alta tecnologia”, como o ferro e o ouro.

Ainda sobre a política de minerais estratégicos, o MME afirmou ser uma “política de apoio ao licenciamento ambiental” e que “não representaria relaxamento de exigências ambientais”. Alcançar tais objetivos se mostra, porém, uma tarefa bastante controversa, uma vez que, entre os projetos apoiados pelo Comitê Interministerial de Análise de Projetos de Minerais Estratégicos (CTAPME), 31,6% causam impactos sobre TIs, 78,9% sobre bens tutelados pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e 37% são alvo de ações civis públicas por motivos diversos. Esses números estão disponíveis em: https://www.gov.br/mme/pt-br/assuntos/secretarias/geologia-mineracao-e-transformacao-mineral/pro-minerais-estrategicos

A professora do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural da Universidade de Brasília (UnB), e diretora da Federação Brasileira de Geólogos (Febrageo), Suzi Huff Theodoro, avalia que as ações do governo Lula para coibir o garimpo ilegal que intensificou a crise humanitária dos Yanomami têm sido efetivas e rápidas. “Entretanto, o governo e MME não avançaram na definição da política mineral,” afirma. Ela ainda adverte que a falta de protagonismo no MME nas ações e discussões sobre os conflitos gerados pelo garimpo ilegal e predatório na TI Yanomami evidencia que o Governo Lula defende interesses contraditórios e até antagônicos.

Suzi Huff Theodoro também criticou a forma como o governo anterior criou a Política Pró-Minerais Estratégicos. “Como se trata de um Decreto, não houve discussão no legislativo, pois foi uma iniciativa unilateral do Poder Executivo. Essa discussão deveria ser feita também pela sociedade, comunidade atingidas, profissionais e técnicos da área, devidamente qualificados e informados do alcance dessa política”, declara Suzi Huff.

O impasse é que a concentração de minerais críticos causa a monopolização das cadeias de abastecimento dessas commodities estratégicas, e as respostas emergentes dos países a essa demanda garantirão seu abastecimento. “Portanto, o governo Lula e MME devem definir políticas públicas que indiquem as formas de controle, taxação e investimentos para o setor mineral”.

Para a professora, as ações do atual governo demonstram que Lula mantém (ou rendeu-se) ao papel atual do país como um fornecedor de bens primários – por exemplo, ferro e nióbio – e continua importando os produtos de que é dependente e para os quais gasta enormes quantias de recursos. Suzi Huff cita a exploração de minério de ferro. “O Brasil é um dos maiores produtores de ferro, mas é a China que se destaca como a maior produtora de aço e materiais manufaturados. Apesar do Brasil possuir grandes reservas de ferro e alumínio, se submete à geopolítica global e exporta os produtos primários, sem agregar valor. Assim, sua participação não lhe garante destaque no mercado global,” destaca Suzi Huff.

Outro ponto que a professora destaca, refere-se ao suprimento de fertilizantes, em especial o potássio (inscrito no rol dos minerais estratégicos). O Brasil importa 96% de sua necessidade de consumo, o que torna refém o “gigante” agronegócio brasileiro. O governo Lula acena com a possibilidade de apoiar a exploração de potássio na região do baixo Amazonas (Audazes), como forma de suprir parte dessa dependência. Além da fragilidade ambiental da região, a mineração impactará profundamente a TI do povo Mura, que está localizada nas áreas de intersecção dos requerimentos minerários da Potássio do Brasil. “No entanto, o Brasil já conta com outras rotas tecnológicas para suprir a carência de potássio. Trata-se dos remineralizadores de solo, amplamente disponíveis em todas as regiões do país e que garantiriam o suprimento de fertilizantes, incrementando o desenvolvimento local, de pequenas minerações e da agricultura em geral. Este tema também está sugerido no documento de transição”, aponta a professora.

Decreto de Bolsonaro que flexibiliza exportações de lítio continua valendo

Outro mineral que é considerado essencial para a “transição energética” é o lítio. Esse mineral é essencial para fabricação de diversas tecnologias, desde telefones celulares até carros elétricos.

Na contramão de países da América Latina, que estão nacionalizando a exploração de lítio em seus territórios, o governo Bolsonaro editou um decreto (nº 11.120/2022) que flexibiliza as exportações de lítio. Com a alteração, “as operações de exportação e importação não são sujeitas a critérios, restrições, limites ou condicionantes de qualquer natureza, exceto aqueles previstos em lei ou em atos editados pela Câmara de Comércio Exterior – Camex”, diz o texto.

A alteração facilita que grandes corporações, sobretudo multinacionais, explorem regiões já empobrecidas pelos processos históricos de mineração, como o Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, que detém 85% das reservas de lítio do Brasil. O decreto beneficia multinacionais como a mineradora canadense Sigma Lithium, que tem um mega projeto de exploração nessa região.

Para Bruno Milanez, esse Decreto deve ser revogado, como também apontou o relatório da equipe de transição do governo Lula, considerando que a norma facilita a mineração e a exportação bruta do minério de lítio, reforçando a inserção subordinada no Brasil no mercado global.

Questionado por essa reportagem sobre a revogação do Decreto, o MME destacou, em nota, que “a flexibilidade das operações internacionais seria o instrumento adequado para promover a competitividade e atrair mais investimentos no setor de mineração nacional. Além disso, apresentam uma vantagem para o desenvolvimento socioeconômico nas regiões que possuem concentrações e reservas desse bem mineral.”

A perspectiva apresentada pelo MME, de promover desenvolvimento nas regiões que tem reservas desse mineral, se mostra, todavia, um tanto desconectada da experiência brasileira, como explica Bruno Milanez: “se avaliarmos casos de municípios que se especializaram em exportar minérios, tais como Paraopeba e Canaã dos Carajás no Pará, ou Itabira e Congonhas em Minas Gerais, o que se observa são municípios que ainda têm a mineração como única atividade econômica e cujos níveis de desenvolvimento se mostram muito aquém da riqueza deles extraída”.

Em relação à afirmação do MME sobre as operações internacionais, não é o que pensam os países da América Latina que detêm as maiores reservas mundiais de lítio, e que tem investido em garantir sua soberania sobre a extração de seus recursos. Na última semana de abril, o presidente do Chile, Gabriel Boric, anunciou que pretende criar uma Empresa Nacional de Lítio para fazer parceria com empresas privadas e o Estado participará de todo o ciclo de produção de lítio em uma “colaboração público-privada” que será controlada pelo governo.

Bolívia, Argentina, Chile, e México também vêm se movimentando para explorar a produção do lítio na América Latina. Com exceção do Brasil, os demais países cogitam uma parceria aos moldes da Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) para o mineral.

Outros países na Ásia vêm adotando a mesma prática para suas reservas de minerais críticos. A Indonésia, rica em reservas de níquel, bauxita, cobre, estanho e carvão, proibiu a exportação de matérias-primas para estimular a indústria local. A China também aprovou uma lei sobre controle de exportação.

Para o professor Bruno Milanez, é urgente que o governo Lula retome a capacidade de o Estado regular o setor para evitar ainda mais retrocessos. Como resposta às violências e aos conflitos causados pela expansão da mineração no país, ele aponta a importância do debate sobre alternativas ao atual modelo de mineração, no qual o Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração (CNDTM) é protagonista. “Uma das propostas é a criação de áreas livres de mineração, com respeito à biodiversidade e a autonomia das populações atingidas ou ameaçadas por mineração,” esclarece Bruno Milanez.

Suzi Huff Theodoro aponta a importância da participação da sociedade e comunidades atingidas nos debates. Ela destaca ainda a necessidade da criação de conselhos sobre o tema, e que profissionais das geociências e áreas especializadas participem de forma efetiva da elaboração de políticas públicas para o setor mineral. “É necessário que o país invista no conhecimento da sua geodiversidade, como forma de garantir sua soberania,” afirma a geóloga.

Sobre a importância da democracia nesse processo, questionamos o MME sobre a previsão de Instalação do Conselho Nacional de Política Mineral (CNPM) – que formula políticas para os segmentos que compõem o setor mineral, incluindo a segurança de barragens. Em nota, o MME respondeu que a instalação do Conselho deve acontecer em breve e que haverá mudanças. Como atualmente o Conselho Nacional de Política Mineral é composto apenas por representantes de ministérios, a SGM informou que a composição deverá ser ampliada para incorporar “um representante dos estados e DF; um representante dos municípios produtores e afetados; três representantes com notório conhecimento no setor mineral, e um representante de instituição de ensino superior com notório conhecimento”.

Entretanto, afirma Bruno Milanez, se essa realmente for a proposta, o governo Lula continua negando acesso à participação das pessoas atingidas, como comunidades vizinhas aos projetos, trabalhadores, e povos indígenas à formulação de políticas voltadas à mineração. “Sem o engajamento efetivo de grupos como esses, e a capacidade de influenciar, de fato, nas decisões, dificilmente se verá a constituição de políticas mais democráticas e menos injustas para o setor mineral no país”, apontou.

Marci Hences é jornalista no Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração.

 

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