Minério não é tóxico, mas os rejeitos de seu processamento pela multinacional francesa Imerys ameaçam a saúde humana e o meio ambiente

“Se o caulim não prejudica a água, por que os peixes aparecem mortos? Até arraia, que é mais resistente, a gente vê boiando. Os camarões apodrecem todos na lama”.

Kezia Caetano, liderança da Associação de Desenvolvimento Comunitário e Cultural de Vila do Conde (Adecovac), descreve com indignação os impactos da mineração sobre as águas de Barcarena, município de 125 mil habitantes na região metropolitana de Belém.

O caulim é uma argila branca constituída do mineral caulinita, usado nas indústrias de papel e revestimentos, cerâmica, fibra de vidro, cimento, borracha, tintas, medicamentos, cosméticos e fertilizantes. O Pará é o maior produtor e exportador nacional.

A principal empresa do setor é a francesa Imerys. As atividades da subsidiária brasileira Imerys Rio Capim Caulim (IRCC) estão associadas a pelo menos 15 incidentes ambientais, de diferentes proporções, nos últimos 20 anos em Barcarena.

Igarapé Dendê, logo após vazamento, em março de 2019. Foto – Reprodução Facebook

É quase impossível esconder um vazamento de caulim. Rios e igarapés são tingidos imediatamente por uma substância leitosa, que compromete o uso da água para consumo humano, lazer e pesca.

O episódio mais recente, em 6 de novembro de 2022, ocorreu próximo ao igarapé Maricá, manchou as águas do rio Murucupi e chegou até a praia do Conde, no distrito onde vive Kezia.

Tubulação onde ocorreu o vazamento mais recente, ao lado do igarapé Maricá . Foto: Marcel Hazeu

A Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Econômico (Semade) de Barcarena coletou amostras de água para avaliar os danos daquele vazamento. A reportagem tentou contato com a Semade, mas não obteve retorno. O Instituto Evandro Chagas (IEC), vinculado ao Ministério da Saúde, informou ter sido notificado de que as amostras estão sob análise do Laboratório Central do Estado do Pará (LACEN), mas o resultado ainda não está disponível.

A Imerys, por meio das empresas IRCC e Pará Pigmentos SA, opera uma fábrica, 12 barragens de mineração, uma rede de minerodutos e um porto privado em Barcarena. Todas as barragens têm dano potencial associado alto, segundo a Agência Nacional de Mineração (ANM). O indicador avalia os prejuízos econômicos, sociais, ambientais e as perdas de vidas humanas que poderiam ocorrer em caso de rompimento, vazamento, infiltração no solo ou mau funcionamento de uma barragem, independentemente da probabilidade de ocorrência.

Onde mora o perigo

O caulim processado pela Imerys é extraído em Ipixuna do Pará, a 220 km de Barcarena, e transportado por minerodutos.

“Ainda na mina, o caulim passa por um primeiro processamento. Ele é triturado e misturado a um reagente – que a gente não conhece, porque eles não divulgam –, para ser transportado na forma líquida”, descreve Simone Pereira, doutora em Química e coordenadora do Laboratório de Química Analítica e Ambiental da Universidade Federal do Pará (UFPA).

“O mineroduto é uma tubulação de plástico, que pode ser perfurado com uma faca e está sujeito a vazamentos quando há incêndios na mata, por exemplo”, observa a pesquisadora.

O caulim não é tóxico, mas o rejeito de seu processamento contém metais como ferro, alumínio, cádmio e zinco, que se acumulam no organismo e podem causar deficiências hepáticas, doenças degenerativas, problemas no sistema imunológico e até demência. Outro elemento preocupante é o bário. Embora menos tóxico e não cancerígeno, ele está presente em alta concentração no caulim e pode comprometer o funcionamento do estômago e dos rins.

O que interessa à Imerys, no processo de beneficiamento do minério, é obter o chamado “pigmento branco”. Depois que ele é isolado, os demais elementos que compõem o caulim são quase todos descartados e depositados como rejeito em bacias de sedimentação.

“Em Ipixuna, ou no mineroduto, esses metais estão imóveis, porque têm ligações muito fortes, então o risco de contaminação é menor. Mas, quando o material passa por um processamento, com ácidos, com aquecimento, as ligações são rompidas e os metais acabam sendo liberados no ambiente”, explica a professora da UFPA. 

“No caso da Imerys, o que nós mais temos observado ao longo dos anos são vazamentos de bacias de rejeitos, que são muito mais graves que um vazamento de tubulação. Os rios da região vêm sendo comprometidos, devido à mudança no pH e à deposição de caulim, a partir de 2007”, acrescenta.

Naquele ano, a principal bacia da Imerys se rompeu, espalhando mais de 200 mil m³ de rejeitos, que percorreram 19 km nos igarapés Curuperé e Dendê e atingiram o rio Pará, um dos mais importantes da região.

“Vila do Conde é rodeada de água: praia na frente, igarapés atrás. Quem trabalhava com pesca artesanal, com bares, teve que ficar vários meses parado. A água ficou branca igual leite”, relembra a moradora Kezia Caetano. “As crianças ainda tomam banho nos igarapés, mas ninguém bebe mais a água, porque sabemos que é poluída”.

Agentes químicos adicionados durante o processo de beneficiamento, como ácido sulfúrico e hidrossulfito de sódio, também causam danos à saúde humana. Em 6 de dezembro de 2021, mais de 100 moradores de Vila do Conde precisaram de atendimento médico após inalarem fumaça tóxica, resultado de um incêndio em um galpão da Imerys que armazenava 500 toneladas de hidrossulfito de sódio, usado para branqueamento do caulim.

“Era uma fumaça branca, como se tivessem queimado mato ali ao lado. Só que parecia cheiro de enxofre, incomodou demais”, conta Kezia. “Eu, minhas netas e minha filha ficamos guardadas em casa. No outro dia, acabei sendo afetada, senti uma irritação forte nos olhos. Até março eu fiquei em tratamento, ainda com os olhos inflamados. Atingiu a garganta também. Fiquei quase um mês sem conseguir falar”.

Riqueza e abandono

O vilarejo – hoje distrito – Vila do Conde foi fundado há 369 anos. O que antes era uma aldeia indígena deu lugar a missões jesuíticas, até a segunda metade do século XVIII. O território deixou de pertencer a Belém em 1938, e foi escolhido quatro décadas depois para sediar o projeto Albrás/Alunorte, com foco na produção de alumínio para exportação.

Em 1985, a Companhia Docas do Pará (CDP) inaugurou um porto para escoamento da produção, o que abriu caminho para a instalação de grandes mineradoras, como a Imerys e a norueguesa Hydro.

A multinacional francesa, que atua em mais de 50 países, se instalou inicialmente sobre uma pequena comunidade, chamada Dom Manoel, com 45 famílias – algumas das quais reivindicam indenização até hoje. A IRCC construiu no local a maior planta de beneficiamento de caulim do mundo. A empresa, com faturamento anual presumido de R$ 91 milhões, responde por cerca de 70% da produção do minério no país, que abastece países como Bélgica, Canadá, Estados Unidos, Itália e China.

Em 2021, a Imerys pagou 7,7 milhões de euros em impostos no Brasil, o que equivale a menos de 8% da receita média anual de suas operações no país.

A Lei Kandir, de 1996, isenta do recolhimento de ICMS produtos primários e semielaborados, beneficiando o conjunto das mineradoras. A atividade contribui com apenas 4%, em média, da arrecadação de ICMS do Pará. No estado, são concedidos ainda incentivos fiscais da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), para fomentar os investimentos na região.

Conforme o Laudo Constitutivo n. 022/2013, que renovou acordo assinado em 2004 junto à Sudam, a Imerys recebeu isenção de 75% do imposto de renda sobre o lucro da exploração decorrente da produção até 2022.

“Mineradoras como a Imerys, voltadas para exportação e com reiteradas violações, são beneficiadas simplesmente porque atuam na região da Amazônia”, lembra Alessandra Cardoso, doutora em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). “Esses incentivos não são reavaliados pela Sudam nem pelos governos. A responsabilidade social e ambiental deveria ser um critério”, defende.

O acordo de isenção do ICMS para a Imerys foi estendido para todas as suas operações em 2007, ano em que a empresa provocou o incidente ambiental mais grave em Barcarena até então. A renovação ocorreu durante o governo de Ana Júlia (PT), maior beneficiada com doações durante a campanha política do ano anterior. Favorita na disputa pela reeleição, em 2010, ela receberia novamente a maior fatia das doações da Imerys, R$ 800 mil. O comitê de campanha do candidato do PSDB, 2º colocado, recebeu R$ 400 mil, e o do PMDB, 3º, R$ 100 mil.

“Por muitos anos, a Imerys foi a maior doadora do estado para partidos, da esquerda à direita, tendo uma relação próxima com qualquer governo que fosse eleito”, observa Marcel Hazeu, mestre e doutor em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido pela UFPA e autor de artigo sobre o tema, assinado em parceria com o colega Jondison Cardoso Rodrigues.

O pesquisador reforça que manter algum nível de relação com o governo do Pará é crucial para as mineradoras. Afinal, o controle ambiental é responsabilidade da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas); a Companhia de Desenvolvimento Econômico do Pará (Codec) administra o distrito industrial onde ocorre o beneficiamento de caulim; e a cobrança de impostos como o ICMS também ocorre na esfera estadual.

O estudo de Hazeu e Rodrigues enfatiza que, entre 2007 e 2017, a receita da Imerys foi “maior do que toda a receita do município [Barcarena], chegando em alguns anos a ser mais que o dobro”. Em Barcarena, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é inferior às médias nacional e estadual e comparável ao de países como Bangladesh – em plena crise humanitária decorrente de migrações forçadas e mudanças climáticas extremas.

“Não há um compromisso com a comunidade ao redor. A própria via de escoamento da Imerys está pior do que a Transamazônica: muita poeira no verão, lama e buraco no inverno”, descreve Rosemiro Brito, liderança comunitária do bairro Industrial, que sentiu febre, inflamação nos olhos e falta de ar após a explosão do galpão em 2021. “A gente não sabia nem o que estava inalando, não foi acionado um sistema de sirene. É inaceitável. Nossas riquezas vão embora de navio. Não sobra nada, só o abandono.”

A Imerys afirma que suas operações “possuem sirenes para o caso de rompimento de bacias”, e que elas só não foram acionadas “por não ter havido nenhuma ocorrência nas estruturas das bacias, que contam com uma equipe 100% dedicada, além de vigilância 24 horas”. As demais informações prestadas pela empresa à reportagem podem ser lidas ao final do texto.

As doações empresariais para campanhas políticas foram proibidas no Brasil em 2015. A mudança na lei, segundo fontes ouvidas pela reportagem, teria fragilizado os vínculos das mineradoras com o governo estadual e aberto caminho para processos, ainda lentos, de responsabilização.

No ano seguinte, a Semas assinou um termo de compromisso para o licenciamento do polo industrial de Barcarena, realizado a partir de acordo com o Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público do Estado do Pará (MPPA), Procuradoria Geral do Estado do Pará (PGE) e Codec. O termo incluía o monitoramento ambiental dos impactos cumulativos e associados das atividades da Imerys no distrito.

As indústrias deveriam financiar os estudos necessários para que a Codec avaliasse os impactos socioambientais. O processo previa participação popular e estabelecia prazos para cada etapa até o licenciamento, que nunca saiu do papel. As empresas, por meio de seus departamentos jurídicos, alegaram que o distrito industrial era anterior à legislação ambiental vigente.

“Mesmo que o distrito tenha sido criado antes, nos anos 1980, a Imerys e outras empresas começaram a se instalar realmente nos anos 1990, quando a legislação ambiental já existia”, analisa Marcel Hazeu. “Foi um acordo feito para não funcionar, porque ninguém assume a responsabilidade. Não houve nenhum passo à frente”.

Multiexposição

Barcarena foi palco de 29 incidentes ambientais neste século, considerando o conjunto das atividades econômicas. Entre os mais graves, estão os vazamentos de rejeitos de caulim de 2007, 2014 e 2016 e a explosão de 2021, envolvendo a Imerys, e o transbordamento de uma das bacias da mineradora Hydro Alunorte, de capital norueguês, que contaminou rios e igarapés próximos à maior refinaria de bauxita do mundo e impactou 80 comunidades.

“A Hydro, depois que saiu das mãos da Vale, tem melhorado alguns procedimentos, aumentando sua capacidade de tratamento de efluentes. A Imerys não faz nem isso: não tem estação de tratamento, não tem qualquer cuidado”, compara a professora Simone Pereira. “No máximo, ela corrige o pH do material e joga diretamente no rio Pará, o que é absurdo”.

Quando ocorre um vazamento de caulim, os rios e igarapés que abastecem Vila do Conde costumam levar até dois dias para voltarem à coloração anterior.

“O rio Dendê e o igarapé Curuperé, que são impactados pela  Imerys, são influenciados pelas marés do rio Pará. Então ele enche, em seguida vaza, e a maré acaba levando embora as provas”, descreve o pesquisador Marcel Hazeu. “Dificilmente algum órgão coleta [amostras] na hora, e assim não há como monitorar o que acontece de fato”.

Foi o que ocorreu, por exemplo, no vazamento mais recente, no rio Murucupi. O IEC foi acionado pelo MPPA na noite do incidente, um domingo (6), mas só conseguiu enviar equipe ao local na tarde de segunda-feira (7). Como a água já havia voltado à coloração anterior, por conta das marés, os técnicos do instituto avaliaram que não fazia sentido coletar e analisar amostras.

Para Sandra Amorim, liderança quilombola e militante do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), falta informação acessível às comunidades sobre as substâncias que vazaram, a quantidade e os impactos que elas podem causar na água e no ar.

Nosso território fica a 493 metros da primeira bacia de rejeitos. Aqui, o povo compra telhas que deveriam durar de 16 a 18 anos, mas, devido à chuva ácida, à contaminação do ar, elas duram seis anos no máximo”, exemplifica. 

Marcelo Lima, chefe da seção de Meio Ambiente do IEC, afirma que relatos como esse são comuns na região. “Não só a Imerys, mas outras mineradoras lançam muito material particulado na atmosfera em Barcarena. Poeira branca, cinza, vermelha… é praticamente um arco-íris. As pessoas percebem os impactos na roupa que está no varal, nos telhados, nas plantas que não geram frutos como antes”, enumera.

Em um dos episódios mais lembrados, em 2003, praias, casas e estabelecimentos comerciais de Vila do Conde ficaram cobertos de material particulado preto, com até 5 cm de espessura, que provocou reações alérgicas e complicações respiratórias em centenas de moradores.

Há três anos, o IEC iniciou a coleta de amostras de poeira domiciliar para análise, mas os resultados ainda não estão disponíveis.

“Há vários relatos de impactos possivelmente associados à mineração do caulim, mas é difícil estabelecer o nexo causal – como o caso da mortandade de peixes, por exemplo. São muitas empresas, muitos dutos subterrâneos, e nem sempre se sabe de onde estão vindo e os produtos que são lançados. Em Barcarena, os impactos são quase sempre uma mistura, porque se trata de uma multiexposição”, completa o chefe da seção de Meio Ambiente.

Entre 2009 e 2014, o IEC coletou amostras de sangue de moradores do bairro Industrial, próximo à indústria de beneficiamento de caulim. Seis anos depois, os pesquisadores concluíram que os níveis de cádmio estavam alterados, mas o estudo não basta para responsabilizar diretamente a Imerys – justamente devido às múltiplas fontes de contaminação que incidem sobre o território.

Além de mineradoras, siderúrgicas e fábricas de pigmentos, estão instaladas no município empresas de celulose e fertilizantes. Os impactos de cada setor se somam a episódios de vazamento de óleo de embarcações no rio Pará e até despejo de fezes de bois no rio Arrozal, na região do porto de Vila do Conde, o que agrava o risco à saúde das comunidades e dificulta a responsabilização.

Acordos e rumores

A primeira resposta objetiva do MPPA aos incidentes ambientais provocados pela Imerys ocorreu em novembro de 2007. Cinco meses após o vazamento de rejeitos da Bacia nº 3, que gerou risco iminente de inundação do bairro Industrial, a empresa assinou o Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta nº 001/2007 – 1ª PJB, comprometendo-se a fornecer água às populações atingidas e a promover reparos em suas instalações, como a impermeabilização das bacias.

Em 2014, logo após o vazamento da Bacia 5C, a Imerys firmou o Termo de Ajuste de Conduta nº 01/2014, desta vez envolvendo também o MPF. As obrigações previstas eram basicamente as mesmas: mitigar os prejuízos à população e prevenir novos vazamentos de rejeitos – o que nunca foi cumprido plenamente. 

Dois anos depois, foi assinado o Termo referente ao licenciamento do conjunto do distrito industrial. Ainda em 2016, o MPPA recomendou a suspensão das atividades da Imerys, alegando que a empresa havia prestado informações falsas aos órgãos de fiscalização ambiental e aos Ministérios Públicos. O pedido não foi atendido.

O esforço legislativo mais relevante para acompanhamento dos casos e responsabilização das mineradoras em Barcarena ocorreu em 2018, por meio da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) “Danos ambientais na bacia hidrográfica do rio Pará”. O relatório final menciona o histórico de desastres no município, alerta para o não cumprimento de recomendações do MPPA e aponta o risco de novos incidentes.

Em visita à Imerys, deputados da Assembleia Legislativa do Estado do Pará (Alepa) atestaram a implementação de “sistemas de controles de qualidade, tais como ISO 9001:2008, 14001:2004 e OHSAS 18001:2007, que aprimoraram a qualidade do serviço oferecido à população”. 

Apesar dessa constatação, os prejuízos ao meio ambiente e à saúde da população de Barcarena não cessaram após o fim da CPI. Em 2019, houve um vazamento de bacia de rejeitos e dois rompimentos de tubulação da Imerys, com contaminação do rio Dendê; em 2021, a explosão do galpão com hidrossulfito de sódio; e, em novembro deste ano, o vazamento no rio Murucupi, cujos danos ainda estão sendo analisados.

Enquanto as iniciativas do Estado não geram resultados efetivos, as nascentes do igarapé Curuperé continuam dentro da área da empresa, sem o devido monitoramento.

“O lançamento de efluentes não tratados no leito dos igarapés impacta comunidades quilombolas e ribeirinhas, como na Ilha de São João, que ainda pescam e consomem aquela água. Estamos refinando dados para um estudo, que ainda não está publicado, mas já indica níveis alterados de bário no organismo dessa população”, observa Marcelo Lima, chefe da seção de Meio Ambiente do IEC.

“É necessário o licenciamento de todo o polo industrial, com declaração efetiva de tudo que se lança nos igarapés, além de um monitoramento ambiental mais frequente na região. Nós somos acionados para ‘apagar incêndio’, mas falta um trabalho preventivo”, lamenta.

Liderança do bairro Industrial, Rosemiro Brito denuncia há anos os danos causados pelas mineradoras e ouve com preocupação as notícias de que a Imerys pretende se desfazer de parte de suas operações no Pará. 

“As bacias ficariam fechadas, tampadas, mas aqui as chuvas são muito fortes e, sem manutenção, poderia haver algum rompimento”, explica Santos. A estação chuvosa, chamada de “inverno amazônico”, ocorre entre dezembro e maio. “Como a empresa é campeã em incidentes ambientais aqui em Vila do Conde, a gente se pergunta: e se acontecer aqui o que aconteceu em Mariana, em Brumadinho? É um barril de pólvora”.

Em algumas áreas, a distância entre as casas e as bacias de rejeito da Imerys é de cerca de 220 metros. “Se houver um rompimento, essas pessoas vão ser as primeiras a morrer”, alerta Sandra Amorim, quilombola e militante do MAM.

A reportagem conversou com moradores que vivem “ao lado” de uma bacia de rejeito da Imerys. Um deles conta que até poucos meses não fazia ideia de como proceder em caso de rompimento. Em agosto, o morador – que prefere não se identificar – participou pela primeira vez de uma simulação de emergência promovida pela empresa, mas diz que continua temendo pela vida de sua família.

“Se tiver chance de mudar para outra cidade, eu mudo. Porque toda hora a gente ouve falar de um desastre aqui, ali. Uma hora vai acontecer com a gente”, desabafa.

A Imerys ofereceu entre junho e agosto deste ano treinamento e simulação de atendimento a emergências para comunidades vizinhas em Barcarena, com o apoio da Defesa Civil e da Prefeitura, atendendo a uma exigência da ANM.

Pesquisadora dos impactos ambientais causados por mineradoras na Amazônia, Simone Pereira concorda que a possível venda ou interrupção das atividades da Imerys em Barcarena só aumentaria o risco das comunidades.

“As milhões de toneladas de rejeito que eles depositam nas bacias, vão levar de volta para a França, ou isso vai ficar aqui conosco, no coração da Amazônia?”, questiona a especialista. “Se com a empresa funcionando já temos tantos problemas, imagina o que pode acontecer sem nenhum tipo de tratamento, de manutenção. Quem vai cuidar dessas bacias? Se elas colapsarem, romperem, acaba com tudo”, alerta.

Outro lado

A reportagem questionou a Imerys sobre os temas mencionados na matéria e solicitou informações adicionais. Segundo a mineradora, o caulim é “um mineral inerte e não perigoso” e “as análises de água da Imerys estão sempre anexadas aos processos administrativos e acessíveis ao corpo técnico e especializado dos diversos órgãos envolvidos”.

A empresa reconheceu que “alguns incidentes ocorreram nos últimos anos” e informou que vem implementando “planos de ação para melhorias contínuas em sua planta, incluindo altos investimentos sobre os quais comunicamos regularmente, via os diálogos sociais que acontecem periodicamente e no informativo trimestral enviado às comunidades locais”.

“Não existe nenhuma tentativa de esconder qualquer resultado”, acrescentou a empresa em comunicado enviado à reportagem, ressaltando que possui um canal para comunicação com a comunidade, via whatsapp, e que “todos os incentivos fiscais usufruídos pela empresa decorrem do cumprimento de requisitos estabelecidos nas respectivas leis”.

A Imerys disse ainda que a possibilidade de venda de “alguns ativos dedicados ao mercado de papel, incluindo as operações de Barcarena” é uma informação pública desde 9 de setembro. 

“Uma vez confirmada esta operação de venda, as comunidades vizinhas serão informadas e a empresa organizará diálogos sociais regulares para esclarecer possíveis dúvidas. O potencial comprador compromete-se a garantir a boa continuidade do negócio do ponto de vista da qualidade e segurança”, informou a mineradora.

Questionada sobre as contrapartidas econômicas e sociais às comunidades de Barcarena, a Imerys informou que gera 500 empregos diretos e cerca de mil indiretos no município, e que há 10 anos tem uma equipe dedicada a “fomentar a educação local, a qualidade de vida e a educação ambiental por meio de projetos sociais”. Uma das iniciativas citadas é a Casa Imerys, que oferece cursos de formação e serviços para as comunidades. 

Durante a apuração, a reportagem ouviu relatos de que a empresa estaria utilizando soda cáustica no processo de mineração e beneficiamento do caulim. A Imerys não confirma essa informação e cita um investimento de “25 milhões de euros nos últimos 4 anos para o reforço das estruturas das bacias de rejeito e dos minerodutos”.

A Imerys acrescenta que “não faz parte do Termo de Compromisso firmado em 2016, entre o Ministério Público Federal, o Ministério Público Estadual, o Governo do Pará e a Codec”, e que segue as leis vigentes e os requisitos definidos por seus órgãos licenciadores.

Sobre a remoção das famílias da comunidade Dom Manuel, a empresa diz que “adquiriu devidamente as suas áreas da Codec, por ocasião da implantação do Distrito Industrial de Barcarena, sem qualquer pendência decorrente dessa compra”.

Também foram enviadas solicitações de informações à Sudam e à Secretaria de Estado da Fazenda do Pará (Sefa), sobre os benefícios fiscais concedidos à Imerys; à Codec, sobre o processo de licenciamento do distrito industrial; à Semas e à Semade de Barcarena, sobre os danos ambientais causados pela Imerys no município e no estado e os processos de fiscalização. Não houve retorno em nenhum dos casos até o momento da publicação.

Daniel Giovanaz é repórter e produz matérias especiais para o Comitê Nacional em Defesa dos Territórios frente à Mineração.

Jornalista e mestre em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Trabalhou por cinco anos no portal Brasil de Fato, como repórter, editor e correspondente internacional. Autor dos livros “O oligopólio da RBS” (Insular, 2017) e “Dossiê Lava Jato: um ano de cobertura crítica” (Outras Expressões, 2018). Coordena projeto, no escritório latino-americano da organização Repórteres Sem Fronteiras, para aprimoramento dos mecanismos de proteção a jornalistas no continente.

 

 

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