Aumento da demanda global por minerais estratégicos deve intensificar pesquisas e gerar mais pressão sobre os territórios
Série: A falsa promessa dos minérios de transição
Por Fernanda Paixão e Daniel Giovanaz
“Araçuaí é Salta daqui a cinco anos”, disse Ana Cabral, CEO da mineradora Sigma Lithium, em entrevista à Folha de S. Paulo em 2023. A comparação inusitada entre um pequeno município do Vale do Jequitinhonha (MG) e a 7ª metrópole mais populosa da Argentina é parte de um discurso empresarial que visa associar a extração de minérios estratégicos a uma imagem de crescimento econômico e benefícios às comunidades locais.
O lítio é uma matéria-prima essencial para a produção de baterias para smartphones, laptops e carros elétricos. Além de Araçuaí, já foram identificadas jazidas em outros 13 municípios do Vale Jequitinhonha. A região tem Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) inferior às médias estadual e nacional e comparável a países da África Subsaariana como Gana e Quênia, que enfrentam desnutrição infantil, dificuldade de acesso a água potável, entre outros problemas estruturais. Se fosse um país, o Vale do Jequitinhonha estaria entre os 50 piores IDHs do mundo.
Cabral, que trabalhou no processo de privatização da Vale, em 1996, afirma orgulhosamente que o Jequitinhonha está sendo transformado no “Vale do Lítio”. O que ela e os demais empresários do setor não mencionam são os danos socioambientais indissociáveis à atividade mineral.
No norte da Argentina, onde está a província de Salta, indígenas já denunciam a poluição das águas e enfrentam ameaça de despejo por conta da exploração do minério. No Jequitinhonha, comunidades tradicionais relatam o aparecimento incomum de animais no entorno das áreas de extração, passaram a conviver com ruídos e poeira e temem ser expulsas de suas casas.
Esta é a segunda reportagem de uma série do Comitê sobre minerais de transição energética, que expõe interesses privados por trás da necessária redução dos níveis de emissão de carbono na atmosfera. A primeira matéria cita quais são os minerais estratégicos, seus usos industriais e as reservas no Brasil e no mundo. A terceira e última, que será publicada em breve, descreverá conflitos territoriais, impactos ao meio ambiente e possíveis prejuízos às comunidades em decorrência dessa “caça ao tesouro”.
Atores públicos, atores privados
A cadeia produtiva da mineração gerou de 2,5% a 4% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro nas últimas décadas, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Ministério de Minas e Energia (MME). O percentual representa entre R$ 150 bilhões e R$ 340 bilhões ao ano.
O setor é quase totalmente orientado para exportação de minerais brutos, e o Estado brasileiro busca formas de atrair novos investimentos de mineradoras estrangeiras. Nesse sentido, surfar na onda da transição energética é uma estratégia óbvia. De acordo com a Agência Internacional de Energia (AIE), a demanda por lítio cresceu 200% entre 2017 e 2022; por cobalto, 70%; e por níquel, 40%. Os três estão entre os principais componentes de baterias e turbinas eólicas – que também consomem cobre, manganês, grafita, silício, titânio, estanho, alumínio, nióbio, entre outros.
A urgência em reduzir as emissões de gases de efeito estufa é um fator de valorização das empresas que já realizam pesquisa e extração de minérios estratégicos no Brasil. A Sigma Lithium, de origem canadense, está cotada nas bolsas de valores Nasdaq (EUA) e de Toronto (Canadá), avaliada em cerca de US$ 3 bilhões. Em meio à corrida global pela liderança no setor de carros elétricos, seus ativos são disputados pelas montadoras Volkswagen, da Alemanha, e pelas chinesas BYD e CATL – e também já estiveram na mira da estadunidense Tesla, do bilionário Elon Musk.
Minas Gerais concentra 40% das grandes minas em operação no Brasil. A maior parte são jazidas de minério de ferro, ouro, bauxita, manganês, estanho e grafite. No contexto da transição energética, o lítio é a principal vitrine.
Há cerca de um ano, por meio da agência estadual Invest Minas, o governador Romeu Zema (Novo) apresentou o projeto Vale do Lítio na bolsa Nasdaq, visando atrair investidores para o Jequitinhonha.
Reeleito em 2022, Zema teve 11% de sua campanha eleitoral financiada por empresários da mineração, como demonstrado pelo UOL. Foram pelo menos R$ 650 mil em doações de sócios da Ferro+ Mineração e da mineradora de ferro e manganês Herculano Mineração. Os sócios desta última são réus pelo rompimento de uma barragem em Itabirito (MG), que matou três pessoas em 2015.
Ana Cabral, da Sigma, está no centro da imagem acima. O registro foi feito em Nasdaq durante a apresentação do projeto Vale do Lítio. A cena remete a um filme de super-heróis, no momento em que os protagonistas decidem unir seus poderes em prol de um bem comum.
A cobiça pelos recursos do Jequitinhonha não é novidade. A região é assediada por projetos extrativistas desde o século XVIII – diamante, ouro, algodão, eucalipto, café, granito, etc. Em todos esses casos, já havia uma promessa de riqueza e desenvolvimento, que nunca se concretizou – ao menos, não para a população local.
A Invest Minas anunciou para junho deste ano uma nova edição do evento Brazil Lithium Summit (em português, Cúpula Brasileira de Lítio), como forma de captar novos investimentos estrangeiros em pesquisa e extração.
O papel das empresas juniores
Apesar da roupagem “verde” ou “sustentável”, a pesquisa em minerais de transição energética aprofunda a lógica da especulação financeira.
Enquanto empresas de grande capital assumem a maior parte da exploração, a etapa prévia de identificação de reservas fica por conta de mineradoras de menor porte. Parte delas são conhecidas como empresas juniores, ou junior companies.
“Na literatura, há certa ambiguidade na definição desse termo”, explica Thaís Henriques Dias, pesquisadora do Observatório Fundiário Fluminense e do Laboratório de Justiça Ambiental da Universidade Federal Fluminense (UFF). “Em geral, o que diferencia as junior companies das demais é que elas dependem fundamentalmente de financiamento externo, ou seja, venda de ações na bolsa de valores”.
Doutoranda em Sociologia e Direito, Thaís Henriques Dias está neste momento no Canadá como pesquisadora visitante na Universidade de York. Ela estuda a geopolítica de empreendimentos minerários e formas de financeirização no Brasil e no país norte-americano – considerado um “paraíso jurídico” para as empresas juniores.
“O capital das empresas juniores não vem da produção mineral em si, mas desse financiamento externo. Para isso, elas têm que mostrar que os direitos minerários que possuem são projetos prósperos de mineração”, pontua a pesquisadora. Se o projeto for considerado atraente, elas vendem parte de seus ativos ou são compradas por uma mineradora maior.
Como a intenção é cativar investimentos, os possíveis prejuízos às comunidades locais e suas resistências ficam de fora dos relatórios financeiros apresentados a potenciais compradores.
O modelo de negócio das empresas juniores é de alto risco. “Poucas minas que estão sendo pesquisadas se tornarão minas ativas, de grande valor”, afirma Luiz Jardim, professor do Departamento de Geografia da UFF, lembrando que o mercado brasileiro é considerado conservador. “É muito difícil conseguir linhas de crédito [para pesquisas minerais], e os juros são altos para compensar a possibilidade de perda”, acrescenta.
Mais pesquisas, mais pressão
Como parte do lobby em torno dos minerais estratégicos, empresas juniores vêm reivindicando uma linha de crédito subsidiada pelo governo brasileiro para o setor de pesquisa, como já ocorre no Canadá.
“O setor de pesquisa também vem exigindo que se dê como garantia fiscal, de investimento, a posse das concessões minerais. Então, uma mineradora pede uma concessão mineral, descobre que lá tem determinado teor de minério por tonelada, e estima que ali há uma jazida com x toneladas. A partir dessa estimativa, já seria possível conseguir empréstimos em bancos, sem qualquer receita corrente existente”, exemplifica o professor Luiz Jardim.
“Isso tornaria o mercado brasileiro extremamente vulnerável a situações nas quais não se tem nenhuma garantia sobre o crédito. Então, a possibilidade de uma bolha no setor bancário seria muito grande, por conta do grau de incerteza das pesquisas em mineração”, ressalta.
Reformas no arcabouço normativo que estimulem novas pesquisas no Brasil também significariam maior pressão sobre terras indígenas e demais áreas protegidas – especialmente onde há indícios de ocorrências de minérios estratégicos.
O “futuro sustentável” propagandeado pelas empresas dependeria, em grande medida, da autorização ou flexibilização das regras para mineração nesses territórios.
“Os minerais estratégicos somam mais pressão, com um discurso de que estaríamos perdendo áreas que poderiam viabilizar a transição energética; de que esses territórios estariam impedindo que o Brasil seja pioneiro”, enfatiza Luiz Jardim. “E as empresas juniores são muito menos preocupadas com a sua credibilidade, com o cuidado ambiental, social, do que as grandes mineradoras – que, embora também sejam grandes violadoras, costumam ter mais zelo por sua imagem junto ao público, os financiadores e acionistas”, lembra.
A maior parte das juniores se concentram atualmente na exploração de ouro, mas o investimento em minerais estratégicos vem crescendo – a própria Sigma foi criada como junior company, em 2012. A anglo-australiana Rio Tinto, por exemplo, tem 36 processos em fase de requerimento de pesquisa junto à Agência Nacional de Mineração (ANM) para identificar reservas de lítio, cobre, alumínio, ouro, ferro e bauxita, totalizando 120,9 mil hectares no Pará, Bahia, Rio Grande do Norte, Ceará, São Paulo e Mato Grosso. Já a suíça Glencore, sob a razão social Glencore Exploração Mineral do Brasil, tem 7 requerimentos à agência na mesma etapa, relacionados a níquel, cobre, alumínio e ouro no Pará, totalizando 17,7 mil hectares.
Quem puxa a fila
Conforme levantamento da pesquisadora Thaís Henriques Dias e de Rhuan Muniz Sartore Fernandes, mestre e doutorando em geografia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), de um total de 30 mineradoras canadenses no Brasil, 21 foram criadas como junior companies. A maior parte atua na pesquisa e prospecção de ouro. As mais conhecidas são Gold Mining, Aura Minerals e Belo Sun Mining. Esta última pretende construir a maior mina de ouro a céu aberto do Brasil, na Volta Grande do Xingu (PA), que ameaça modos de vida e sobrevivência de povos indígenas e ribeirinhos.
Além delas, a Lithium Ionic possui descobertas de lítio em Itinga (MG) e Salinas (MG); a Bravo Mining, um projeto de prospecção de níquel e outros minérios em Curionópolis (PA); a Lara Exploration, um projeto de cobre no Pará e de grafita no Ceará; e a Appia Rare Earth and Uranium desenvolve pesquisas para exploração de terras raras em Goiás.
A reportagem mapeou outras 10 empresas estrangeiras que já investem em projetos para prospecção e extração de minerais de transição no Brasil. O levantamento não considerou minérios que já são explorados em grande escala há décadas, como alumínio e cobre – cuja demanda global também deve aumentar significativamente para fabricação de tecnologias para redução de emissões de gases de efeito estufa.
Chama atenção a prevalência de empresas com sede no Reino Unido, Canadá e Austrália. Os dois últimos países, cabe ressaltar, possuem arcabouços normativos que permitem financiamentos a projetos de maior risco, tornando-se propícios para o surgimento e atuação de empresas juniores.
Quanto às grandes mineradoras, cabe chamar atenção para o avanço do capital chinês, por meio da empresa CMOC International, que em 2016 comprou as operações de nióbio da Anglo American por US$ 1,7 bilhão em 2016. Os impactos das minas a céu aberto nos municípios de Catalão (GO) e Ouvidor (GO) serão detalhados na próxima reportagem.
Assim como a Sigma Lithium e a Lithium Ionic, de origem canadense, a australiana Latin Resources possui um projeto de extração de lítio no Jequitinhonha, com sede em Salinas. Os investimentos previstos são superiores a R$ 1,5 bilhão. A mil km de distância, a Meteoric Resources promete investimento bilionário na extração de minérios de terras raras em Poços de Caldas (MG). Zema assinou um protocolo de intenções junto à empresa em 2023, propagandeando uma mineração “segura e verde”.
No Sudeste do Piauí, o conglomerado britânico TechMet conta com financiamento na ordem de R$ 250 milhões da agência federal estadunidense US Development Finance Corporation (DFC) para explorar lítio, níquel e cobalto em Capitão Gervásio Oliveira (PI).
Já no Ceará, além de projetos de pesquisa visando à exploração de grafita iniciados pela empresa junior Lara Exploration e pela mineradora estadunidense Paradigm Metals no município de Canindé, há sondagens da australiana Oceana Lithium para extração de lítio no município de Solonópole.
Na Bahia, destacam-se projetos de extração de grafita e níquel, respectivamente, pela mineradora canadense South Star, no município de Santa Cruz, e pela britânica Atlantic Nickel, que possui uma das maiores minas de níquel sulfetado a céu aberto do mundo (Santa Rita), com capacidade de produção de 6,5 milhões de toneladas por ano, em Itagibá. Os ativos da Atlantic Nickel em Itagibá pertencem ao fundo britânico Appian Capital e estão sendo negociados com a mineradora canadense Teck Resources por cerca de US$ 1 bilhão.
Ainda em relação ao níquel, há empreendimentos da britânica Anglo American em Barro Alto (GO) e Niquelândia (GO), e da australiana Centaurus Metals em São Félix do Xingu (PA). Ambas possuem ainda projetos para extração de níquel-cobalto no Sudeste do Pará.
A maior parte dos requerimentos de pesquisa relacionados a minerais de transição registrados pela ANM até março de 2024 visam avaliar e determinar o aproveitamento econômico de jazidas de lítio e minério de lítio (1154); nióbio (342); níquel e minério de níquel (311); grafita (91) e minério de cobalto (31).
Quanto aos requerimentos de lavra (após a aprovação do relatório final de pesquisa e em sua maioria com licença ambiental aprovada), o ranking é encabeçado por níquel e minério de níquel (95), seguidos de grafita (80), minério de lítio (14), vanádio (7), terras raras (7) e silício (5) – os levantamentos não consideraram metais como cobre, alumínio e manganês.
A lista de requerentes abrange desde pessoas físicas e pequenas empresas locais até subsidiárias de conglomerados estrangeiros como a Anglo American Níquel Brasil Ltda, que possui requerimentos de lavra de minério de níquel e cobalto no Pará.
O estado possui uma das maiores reservas de níquel do planeta, entre os municípios de São Félix do Xingu, Ourilândia do Norte e Parauapebas, atualmente sob controle da Vale. O projeto Onça Puma é objeto de disputas judiciais há mais de uma década. Em um dos capítulos mais recentes, no final de fevereiro, a Secretaria do Meio Ambiente do Estado do Pará (Semas) suspendeu a licença de operação da mina, por “descumprimento de condicionantes ambientais”.
O empreendimento da Vale já provocou a expulsão de assentados da reforma agrária e a contaminação do rio Cateté, que banha terras indígenas Xikrin do Cateté e Kayapó. Em 2022, a mineradora anunciou investimentos da ordem de US$ 555 milhões para ampliar a produção da mina.
Em comunicado à imprensa, a Vale informou que “envia periodicamente aos órgãos ambientais os relatórios de todos os programas sociais executados na região”, e que uma decisão liminar da Vara Cível de Ourilândia do Norte já teria restabelecido a licença de operação do Onça Puma.
Pode passar
Doutora em Sociologia, Elaine Santos estuda a exploração de minérios no Brasil e na Europa, com particular atenção a aspectos geopolíticos e à transição energética. Ela ressalta o contraste entre as políticas adotadas pelos Estados no Norte e no Sul global. Um dos exemplos mencionados é o Decreto nº 2.413/1997, que tinha caráter protecionista sobre o lítio brasileiro e foi revogado por Jair Bolsonaro em junho de 2022.
“Aquele decreto nunca foi uma barreira, de fato, para a atuação de empresas estrangeiras no país – e essa foi justamente a explicação que deram para a revogação”, lembra a pesquisadora. “Depois de revogado, não tivemos nenhuma legislação específica para essa matéria-prima, enquanto os EUA e a Europa têm feito várias elaborações de documentos e planos de ação para proteger as matérias-primas que consideram estratégicas”, compara.
Praticamente todas as iniciativas recentes do Estado brasileiro, com maior ênfase durante o governo Bolsonaro, buscam responder à “desburocratização” demandada pelas mineradoras privadas. Algumas medidas também podem beneficiar o garimpo, como o Decreto 10.965, de fevereiro de 2022, que estabelece “critérios simplificados para análise de atos processuais e procedimentos de outorga” de empreendimentos de mineração, criando a hipótese de registro de licenciamento tácito – caso a ANM não se manifeste sobre o pedido no prazo estabelecido.
O mesmo decreto (§ 7, art. 9º) prevê que a empresa responsável “poderá dar continuidade aos trabalhos, inclusive em campo, com vistas ao melhor detalhamento da jazida, à identificação e à quantificação de novas substâncias”. “É uma brecha legal que permite registrar um processo minerário, indicar uma substância, e depois alterá-la”, explica Aline Weber Sulzbacher, professora Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) e coordenadora do grupo de pesquisa Observatório dos Vales e do Semiárido Mineiro. Essa prática já vem sendo utilizada amplamente por mineradoras da região, conforme estudos recentes do Observatório.
O artigo 24 do mesmo decreto retoma a possibilidade já prevista no Código da Mineração, em caráter excepcional, de extração de substâncias minerais através da chamada Guia de Utilização (GU). “Não se aplica a todos os minérios. Alguns estão incluídos, como ferro e lítio”, afirma Izabella Aléxia Carneiro Santos, pesquisadora do mesmo Observatório da UFVJM. Esse instrumento que permite o início da extração mineral já na etapa de pesquisa, antes mesmo da outorga de concessão de lavra. “É muito grave. A depender do tamanho da reserva, ela acaba já nessa fase [de pesquisa]”, alerta Santos.
O governo Bolsonaro também foi responsável por instituir a política de apoio ao licenciamento ambiental de projetos para produção de minerais estratégicos, por meio do Decreto 10.657/2021.
Minerais estratégicos são definidos no texto como aqueles importantes para produtos e processos de alta tecnologia; que gerem superávit para a balança comercial do país; ou cuja importação em grandes quantidades seja demandada por setores vitais da economia.
Ao incluir o critério da geração de superávit, o decreto de Bolsonaro abre margem para que quase todo projeto de extração de metais se encaixe nessa categoria – uma vez que a exportação ocorre, via de regra, em forma bruta ou após beneficiamento primário.
O decreto faz referência à Lei 13.334/2016, que estabeleceu o dever do Estado de atuar para que os processos sejam concluídos em prazo compatível com seu “caráter prioritário”. A intenção é clara: acelerar a concessão de licenças para empreendimentos do setor mineral, ainda que se comprometa o rigor da avaliação de seus impactos socioambientais.]
De 1973 a 2020, a ANM registrou 188 processos minerários relacionados à exploração de lítio no Vale do Jequitinhonha. Só no período entre 2021 a 2023 foram quase 400 processos, que abrangem cerca de 500 mil hectares em conflito territorial.
Lobby empresarial pós-Bolsonaro
Além da atuação individual de cada mineradora na “gestão de riscos sociais” de seus empreendimentos, o setor mineral opera em conjunto visando influenciar o poder público a tomar decisões favoráveis a seus interesses. Práticas de lobby semelhantes às citadas em Minas Gerais também ocorrem em âmbito nacional – com nova roupagem após o fim do governo Bolsonaro.
Doutora em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisadora do Laboratório de Economia e História, Ana Carolina Reginatto afirma que a vitória eleitoral de Lula (PT) impactou no modus operandi da articulação política do setor mineral. “A ascensão de um governo do campo progressista impacta no modus operandi da articulação política do setor mineral”, analisa Ana Carolina Reginatto. “Há uma emergência de um discurso da mineração como essencial para a transição energética, um discurso de sustentabilidade – que é uma agenda cara ao PT –, e certo escanteamento de pautas mais agressivas, que poderiam bater de frente com a agenda do governo eleito”, completa a historiadora.
O lobby do setor é liderado há décadas pelo Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM), organização privada criada em 1976 que representa cerca de 160 empresas. Dentre as associadas, estão gigantes como Vale e Anglo American – além de indústrias que utilizam em grande escala minerais de transição, como a chinesa Huawei, de telecomunicações; a automotiva sueca Volvo e a francesa Tractebel (atualmente Engie), de engenharia, com foco em energias renováveis.
Entre as pautas que teriam perdido centralidade – temporariamente – após o fim do governo Bolsonaro, Reginatto cita a defesa da mineração em terras indígenas. “Embora se perceba certa maquiagem no conteúdo, para torná-lo mais palatável ao Executivo Federal, a agenda permanece: abertura de novas frentes de exploração, flexibilização da legislação ambiental, desburocratização”, enfatiza a pesquisadora.
Os interesses das empresas juniores, particularmente, estão na pauta da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa Mineral e Mineração (ABPM), fundada em 2021. A entidade reúne 44 companhias, a maioria estrangeiras, e defende isenções fiscais e linhas de crédito para pesquisas minerais, além de aceleração dos procedimentos para autorização de novas pesquisas.
Diretores e conselheiros da ABPM possuem histórico de atuação no IBRAM, além de experiência na direção de grandes mineradoras como Gold Fields (África do Sul), Warburg Pincus (EUA) e Vale.
Dentre as poucas empresas que compõem tanto a ABPM quanto o IBRAM, estão a Sigma Lithium e a Bemisa. Uma das apostas mais recentes da Bemisa é o projeto Bambuí, para prospecção de terras raras no noroeste de Minas Gerais – entre os municípios de Carmo do Paranaíba, Arapuá, Matutina e Tiros. A expectativa da empresa é “tornar viável um depósito de terras raras de classe mundial”. A mineradora realiza estudos de exploração em 65 direitos minerários adquiridos em 2023 nas províncias de Alta Floresta e Tapajós, onde tem propagandeado alto potencial para cobre, níquel grafite e lítio.
A interlocução entre grandes mineradoras e Executivo Federal é facilitada desde 1996 pela Agência para o Desenvolvimento e Inovação do Setor Mineral Brasileiro (ADIMB), entidade privada com 48 associadas – dentre as quais a Vale, a Sigma Lithium e a Anglo American. O IBRAM é “sócio nato” da ADIMB, assim como a ANM, MME e o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Entre os objetivos da associação estão viabilizar a execução de “projetos cooperativos” entre empresas, governo e universidades e incentivar articulações visando ao desenvolvimento técnico-científico do setor mineral.
A historiadora Ana Carolina Reginatto analisa que os canais de acesso das entidades empresariais junto às esferas decisórias em âmbito federal se mantiveram abertos, mesmo com a eleição de Lula. Como exemplo, ela cita a presença do IBRAM no Grupo de Transição e o alinhamento do governo e entidades empresariais do setor em eventos internacionais, como a convenção da Prospectors & Developers Association of Canada (PDAC).
Com 92 anos de existência, a PDAC é a principal entidade representante dos interesses das mineradoras canadenses. Sua convenção anual, em Toronto, reúne em média 20 mil participantes de 130 países e é considerada o maior evento de mineração do mundo. O tema da última convenção, em março de 2024, foi “Sustentabilidade, Inclusão, Mercado de Capitais e Minerais Críticos”.
Durante o evento, houve apresentações de empresas e do governo brasileiro, incluindo representantes da ADIMB, do IBRAM e da ANM. O MME aproveitou a oportunidade para lançar um “Guia para o Investidor Estrangeiro em Minerais Críticos para Transição Energética no Brasil” e um Fundo de Investimentos (FIP) que irá disponibilizar R$ 1 bilhão para projetos de exploração mineral que atendam à cadeia produtiva da transição energética e de fertilizantes. A seleção pública dos projetos será aberta em maio, e o resultado dos pedidos de financiamento deve ser anunciado em outubro.
“A demanda mundial pelos nossos minerais estratégicos para transição deve crescer 3,5 vezes até 2030. Estamos trabalhando para tornar o mercado mineral brasileiro cada vez mais atrativo”, disse durante o evento o secretário Nacional de Geologia, Mineração e Transformação Mineral do MME, Vitor Saback.
O Brasil estima que 6% do financiamento para seus projetos de transição energética sejam oriundos do setor privado, em comparação com uma média de 81% em países desenvolvidos. Para elevar esse percentual, o Ministério da Fazenda e o Banco Central lançaram em 2024 o programa Eco Invest Brasil, que desenvolverá mecanismos para reduzir riscos relacionados à volatilidade do real. O programa conta com apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que se comprometeu a destinar US$ 2 bilhões para linhas de crédito.
Cabe ressaltar que o Novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) já prevê investimentos públicos especificamente para transição energética, que incluem estudos para projetos relacionados à produção de urânio, cobalto, níquel, lítio, terras raras, grafita, entre outros. O MME terá 165 empreendimentos no programa, com investimento total de R$ 592 bilhões.
Aliados em Brasília
A mudança no modus operandi das entidades de classe a partir de 2023, observada por Reginatto, se cristaliza com o lançamento da Frente Parlamentar da “Mineração Sustentável”, lançada há um ano com o pretexto de “modernizar a legislação brasileira” para facilitar projetos de pesquisa e exploração.
Nos primeiros 9 meses, a Frente Parlamentar realizou 18 eventos, entre missões técnicas, audiências públicas e seminários, além de enviar representantes à Conferência das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (COP 28), em Dubai.
Ao todo são 25 parlamentares membros – 11 diretores e 14 coordenadores temáticos. Todos são filiados a partidos de direita e centro-direita, alguns com longo histórico de relação com mineradoras.
Nas últimas eleições para deputado federal em que era permitido o financiamento empresarial de campanhas, em 2014, quatro dos atuais membros da Frente receberam doações de grandes mineradoras.
Os maiores valores foram destinados a Luiz Fernando Faria (PSD/MG), hoje coordenador da área de Agregados da Construção Civil, que recebeu então R$ 1,05 milhão de 7 empresas de mineração, energia e aço: R$ 500.000 da Vale Energia, R$ 200.000 da Vale Manganês, R$ 100.000 da Companhia Brasileira de Siderurgia e Mineração, R$ 88.000 da Companhia Siderúrgica Prada, R$ 70.000 da Companhia Brasileira de Alumínio, R$ 67.480 da ArcelorMittal Brasil e R$ 30.000 da Braskem.
A Frente Parlamentar é presidida pelo deputado federal Zé Silva (Solidariedade-MG), aliado do governador Zema. O diretor para a região Norte, deputado Joaquim Passarinho (PL-PA), é um fiel seguidor de Bolsonaro e um dos principais interlocutores de garimpeiros no Legislativo. Já o coordenador da área de Energias Renováveis e Transição Energética, Danilo Forte (União/CE), apoia abertamente a exploração de urânio em Santa Quitéria, no Ceará, que já teve três processos de licenciamento ambiental negados em meio a denúncias de contaminação e violações de direitos humanos.
O único senador membro da Frente Parlamentar é o vice-presidente Zequinha Marinho (PSC-PA), defensor do uso de áreas protegidas para fins de mineração e conhecido por abrir as portas do governo Bolsonaro para grileiros da Amazônia.
Além da pauta da “simplificação” e aceleração dos processos de licenciamento ambiental, as audiências e debates promovidos pela Frente buscam colocar na agenda a ampliação de caminhos para captação de recursos por mineradoras no mercado financeiro.
Em audiência pública recente, com presença de representantes da ABPM, defendeu-se a atuação das empresas juniores de mineração, como no modelo canadense. Uma das principais bandeiras, nesse sentido, é o Projeto de Lei (PL) 5424/2023, para fomentar novos investimentos em pesquisa mineral com o pretexto de viabilizar a transição energética.
A prospecção e extração de minérios com tal finalidade já provoca conflitos e disputas territoriais em dezenas de territórios pelo Brasil. Os impactos socioambientais serão detalhados na próxima reportagem desta série.
Outro lado
A Frente Parlamentar da Mineração Sustentável informou ao Comitê que tem atuado no Congresso Nacional para “promover debates a fim de que o Brasil não fique para trás em relação à transição energética global e ao desenvolvimento tecnológico, científico e econômico”. Para isso, tem realizado, na Câmara dos Deputados, seminários sobre temas como estruturação da ANM, vinculação dos recursos da CFEM na diversificação econômica das regiões mineradoras, rastreabilidade do ouro e promoção de incentivos para pesquisa mineral (PL 5424/23), visando “aumentar o conhecimento das reservas do país, algo fundamental para segurança e soberania nacional”.
Conforme informado pela Frente, seu papel é “promover um ambiente favorável ao desenvolvimento da mineração sustentável, com uma legislação mais moderna, com maior segurança jurídica, com órgãos reguladores e fiscalizadores fortes e estruturados, com mais investimentos em pesquisa, tecnologia e inovação”.
Por fim, a Frente afirma que não possui acordo de cooperação técnica com o IDM Brasil, mas com o IBRAM, “responsável por fomentar inovações, promover debates, eventos, estudos, pesquisas e estatísticas relativos à economia mineral”.
Reportagem atualizada em 03/07/2024.
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Fernanda Paixão é jornalista internacional com foco na América Latina e direitos humanos.
Também é tradutora de espanhol/português do Instituto Internacional de Planejamento Educacional para a América Latina e o Caribe da Unesco. Durante três anos, foi correspondente da Argentina para o portal de notícias Brasil de Fato.
Daniel Giovanaz é repórter e produz matérias especiais para o Comitê Nacional em Defesa dos Territórios frente à Mineração.
Jornalista e mestre em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Trabalhou por cinco anos no portal Brasil de Fato, como repórter, editor e correspondente internacional. Autor dos livros “O oligopólio da RBS” (Insular, 2017) e “Dossiê Lava Jato: um ano de cobertura crítica” (Outras Expressões, 2018).