Brasília (DF), 24 de dezembro de 2022: empresário bolsonarista é preso por fabricar bomba que seria usada em atentado às vésperas da posse de Lula (PT). O suspeito, George Washington de Oliveira, admite motivação política e afirma que os explosivos são oriundos de garimpos no Pará. Entre outros negócios, Oliveira também é sócio do Super Posto Dimalice, em Alto Alegre (RR), aberto há 30 anos para atender garimpeiros da região.
As menções ao garimpo no noticiário sobre o caso não são mera coincidência. Do desmatamento recorde na Amazônia ao assassinato de Dom Phillips e Bruno Pereira; dos pedidos de propina em “barras de ouro” à invasão das sedes dos Três Poderes: violações socioambientais e possíveis crimes do governo Bolsonaro (PL), em diferentes frentes, contêm as digitais dessa atividade predatória.
“Além do interesse econômico, o garimpo é um elemento fundamental do bolsonarismo. Ele une uma série de elementos que realmente estruturam a forma como Bolsonaro governou”, observa a pesquisadora Ana Carolina Reginatto, doutora em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “É uma atividade realizada muitas vezes de forma ilegal, com prejuízos ao meio ambiente, que está associada a conflitos violentos, inclusive ao assassinato de lideranças indígenas”.
O episódio de repercussão mais recente é o genocídio do povo yanomami, em Roraima. Ao menos 44 indígenas foram assassinados em áreas de garimpo no estado durante o governo Bolsonaro. Os homicídios e execuções se somam a um cenário de desnutrição, violência sexual, contaminação por mercúrio e surtos de doenças como a malária – consequências da atividade garimpeira ilegal, que cresceu 54% e devastou 1.782 hectares da Terra Indígena Yanomami (TIY) só em 2022.
“Os garimpeiros trazem todo tipo de doenças, sobretudo respiratórias. Os poços do garimpo também causam aumento descontrolado de mosquitos, que são vetores, por exemplo, de malária”, explica a cientista social Luciana Landgraf, que já foi voluntária na Hutukara Associação Yanomami e é doutoranda em Antropologia na Universidade de Paris Cité.
Os recursos federais para assistência de saúde indígena caíram quase 20% em quatro anos. A pesquisadora lembra que muitas equipes de saúde que deixaram a TIY no início da pandemia de covid-19 não tiveram segurança para retornar, devido ao avanço do garimpo. Assim, doenças facilmente tratáveis se espalharam rapidamente.
“Quando uma pessoa está doente, não consegue prover alimentos para seus filhos, para os idosos. A própria poluição dos rios e da floresta afugenta os animais. Então, quando os yanomami não conseguem mais caçar e pescar, começa a faltar proteína”, acrescenta.
Garimpo e atos antidemocráticos
Uma das primeiras ações do Ministério da Saúde sob o novo governo Lula foi declarar emergência em saúde pública para enfrentar a crise humanitária na TIY. O novo presidente criou um Comitê de Coordenação Nacional, para atender os indígenas, mandou cortar o tráfego aéreo e fluvial e publicou decreto para acabar com o garimpo no território.
A mudança de postura do Executivo sobre o tema já era anunciada na campanha. Com seu projeto derrotado nas urnas, garimpeiros ilegais passaram a financiar e participar de atos contra o resultado eleitoral antes mesmo da posse.
Em 15 de novembro, o garimpeiro Rogério Amorim Macedo da Silva foi detido pela polícia em Itaituba (PA), flagrado com R$ 150 mil em dinheiro vivo e 78 camisetas verde-amarelas com o lema “Deus, Pátria e Família”. Ele é suspeito de patrocinar “ações delituosas de bloqueio de rodovias” no Pará após a vitória de Lula.
Em Novo Progresso (PA), uma semana antes, bolsonaristas acampados dispararam balas e atiraram pedras contra policiais que tentavam desbloquear a rodovia BR-163. O município deu 83% dos votos para Bolsonaro contra Lula, segundo maior percentual do país. A região é tradicionalmente ocupada por indígenas kayapó, e hoje sua economia é baseada no garimpo e na extração de madeira. Os responsáveis por financiar e organizar o acampamento ainda estão sendo investigados.
O vandalismo, antes pulverizado em redutos bolsonaristas, produziu os primeiros estragos na capital federal em 12 de dezembro, data da diplomação do presidente eleito. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes decretou a prisão preventiva de quatro pessoas por incendiar carros e ônibus e depredar uma delegacia. Na ocasião, a polícia disse ainda apurar o envolvimento de “empresários do agronegócio, pastores e pessoas ligadas ao garimpo ilegal” na organização dos atos.
O pastor João José de Sousa, pecuarista e garimpeiro em Ourilândia do Norte (PA), acampou em Brasília de 14 de novembro até o final do ano, segundo apuração da ONG Repórter Brasil. Ele gravou vídeos contra o resultado eleitoral e contra o STF e implorou por intervenção militar, mas não é suspeito de participação em ações violentas. Em 2020, Sousa se reuniu com a diretoria colegiada da Agência Nacional de Mineração (ANM) para defender condições para expansão da atividade garimpeira – Victor Froner Bicca, então presidente da Agência, era favorável à mineração em terras indígenas (TIs).
Situação mais grave enfrenta Rodrigo Cataratas, empresário de Boa Vista (RR) que participou de atos bolsonaristas com pautas antidemocráticas, como o de Sete de Setembro. Candidato a deputado federal pelo PL, ele foi preso ainda durante a campanha, por compra de votos. Cataratas também já foi indiciado por suspeita de crime ambiental, crime contra a ordem econômica e posse e comercialização ilegal de munições. Segundo a PF, duas empresas dele movimentaram cerca de R$ 200 milhões entre 2020 e 2021 com atividades ilegais na TIY.
O grupo liderado por Cataratas também é dono de empreendimentos que receberam recursos milionários do governo Bolsonaro para o transporte aéreo relacionado à saúde indígena, conforme denúncia da Folha de S. Paulo.
As conexões entre o lobby pró-garimpo e a incitação ao golpe se evidenciaram com a invasão e depredação das sedes dos Três Poderes, em 8 de janeiro. Enric Lauriano, empresário e garimpeiro de Xinguara (PA) que participou daquele ato, foi candidato a 1º suplente de senador em 2022 na chapa de Flexa Ribeiro (PP-PA) – consultor da Associação Nacional do Ouro (Anoro), que trabalhou ativamente pela autorização da mineração em TIs no governo Bolsonaro.
A comprovação dos elos entre o garimpo e o financiamento de ações golpistas é uma tarefa complexa. No caso de Xinguara, por exemplo, a ONG Repórter Brasil apurou que o PIX da loja de informática Usa Brasil era divulgado em grupos do Whatsapp para arrecadar verbas para os atos. Na cidade, a loja é associada ao empresário Ricardo Pereira da Cunha, conhecido como “Ricardo da USA Brasil” – citado por George Washington de Oliveira por suposto envolvimento na tentativa de atentado em Brasília, em dezembro. Em 2021, Lauriano posou para uma fotografia nessa mesma loja, convidando bolsonaristas a se filiarem ao partido Aliança Pelo Brasil, mas os vínculos carecem de investigação detalhada.
Presença constante no acampamento em frente ao quartel-general do Exército em Brasília, o produtor Luciano Guedes ocupou entre 2019 e 2022 cargo comissionado no gabinete do senador Zequinha Marinho (PL-PA) – que atuou em Brasília para regularizar as atividades de uma cooperativa suspeita de exploração ilegal de ouro. Guedes usou suas redes sociais para criticar a prisão dos suspeitos de participação nos atos de 8 de janeiro.
Outro apoiador ferrenho do do garimpo ilegal, o deputado federal José Medeiros (PL-MT) culpou Alexandre de Moraes pela invasão dos Três Poderes e tentou justificar a atitude dos bolsonaristas. “Essas pessoas estariam em casa se o complexo de soberano não tivesse sido tão forte no ministro Alexandre. Ao decidir não dar explicação para dúvidas simples [sobre o processo eleitoral], gerou revolta de quem verdadeiramente tem o poder, o povo. Não se enganem, ou baixa a bola ou vai piorar”, declarou.
A historiadora Ana Carolina Reginatto atribui a essa “revolta” outros significados: “Com Bolsonaro, tanto as entidades como algumas figuras centrais do garimpo tiveram acesso muito direto ao alto escalão do governo. Até mesmo setores do aparelho do Estado não voltados diretamente à mineração, como Meio Ambiente ou a Vice-Presidência, abriram as portas de seus gabinetes para fazer articulação política pró-garimpo”, lembra.
Para esses grupos, a vitória de Lula sobre Bolsonaro, a nomeação de Marina Silva (Meio Ambiente) e das lideranças indígenas Sônia Guajajara (Povos Originários) e Joenia Wapichana (Funai) significam o fechamento de portas em Brasília.
“O que está em jogo para eles é sempre a perspectiva de se abrir novas áreas de exploração, tanto para a mineração industrial quanto para o garimpo. E, como esse é o interesse principal, as terras indígenas são a joia da coroa”, completa Reginatto.
Do primeiro ao último dia
Uma das primeiras medidas de Bolsonaro como presidente, em janeiro de 2019, foi transferir a Funai do Ministério da Justiça para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, chefiado por Damares Alves, e atribuir os processos demarcatórios ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).
Como o texto original dessa Medida Provisória (MP) foi rejeitado pelo Congresso, o Executivo promulgou a MP nº 886, mantendo a Funai vinculada ao Ministério da Justiça, mas concretizando a transferência das atribuições de demarcação de TIs ao Mapa. Na prática, a decisão contribuiu para o cumprimento de uma promessa da campanha de 2018: “nem 1 cm a mais para terras indígenas”.
O genocídio yanomami não foi a primeira tragédia de repercussão internacional associada ao garimpo e à desestruturação da Funai. O indigenista Bruno Pereira foi exonerado da Fundação logo após liderar “a maior destruição de garimpo do ano” em terras yanomami, em 2019. Ele passou em defesa dos indígenas por conta própria, sem proteção do Estado, até ser assassinado em 2022, ao lado do jornalista britânico Dom Phillips, no Vale do Javari.
Indígenas da região consideram que Bruno Pereira sofreu “perseguição” por seu trabalho de excelência na Funai. A exoneração foi assinada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, então sob comando de Sergio Moro, hoje senador (União Brasil-PR). Um mês antes de ser morto, o indigenista denunciou em áudio o avanço dos garimpeiros ilegais no Vale do Javari: “Está empestado de balsa de garimpo”, disse.
Bolsonaro nunca escondeu seu “passado garimpeiro”. Reginatto lembra que o ex-presidente é afilhado político do major Curió, interventor do garimpo de Serra Pelada (PA) durante a ditadura civil-militar. Em 1986, eleito deputado federal, Curió chegou a enviar uma carta ao então capitão do Exército expressando seu desejo de “passar o bastão” a ele.
“Sempre que possível, Bolsonaro cita que seu pai foi garimpeiro [em Serra Pelada]. Como presidente, ele apoiou mesmo as ações ilegais do garimpo, dizendo abertamente que iria legalizar as atividades em áreas proibidas por lei”, enfatiza a pesquisadora.
Em outubro de 2021, pela primeira vez um presidente da República visitou uma área de garimpo ilegal – dentro da TI Raposa Serra do Sol, em Roraima. Na ocasião, Bolsonaro defendeu que a atividade em terras indígenas fosse regularizada, nos termos do Projeto de Lei (PL) nº 191/2020, de autoria do Executivo.
O apoio do capitão à expansão do garimpo foi retribuído nas urnas. Na soma dos três municípios brasileiros com maior atividade garimpeira – Itaituba (PA), Jacareacanga (PA) e São Félix do Xingu (PA) –, o candidato derrotado recebeu 61,4% dos votos válidos no 2º turno, quando tentava a reeleição. Os dados contrastam com o dos demais municípios do Pará: Lula venceu com 52,2% no estado, obtendo vantagem acima da média nacional.
Além das portas abertas aos lobistas, Bolsonaro assinou em fevereiro de 2022 um decreto para instituir o “Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Mineração Artesanal e em Pequena Escala”. O texto se baseia na ideia de que o garimpo seria uma atividade rudimentar, realizada em pequena escala, e que seria potencialmente “sustentável”.
“Essa não é a realidade do Brasil há alguns anos. O garimpo é altamente destrutivo, tem maquinário pesado e grande aporte de investimentos”, adverte Reginatto. A referência ao garimpo como “mineração artesanal” no decreto também indica uma manobra. “Na Constituição, existe previsão para se regulamentar a mineração [industrial] em terra indígena, enquanto o garimpo, feito por não indígenas, é proibido”, completa a historiadora. A medida foi revogada completamente por Lula no 1º dia de seu terceiro mandato.
Ao todo, 21 pedidos formais de ajuda por parte Hutukara Associação Yanomami foram ignorados durante o último governo.
“Desde quando era deputado federal, Bolsonaro tem um projeto específico contra a existência dos yanomami, propondo revogar a portaria de demarcação da TIY. O projeto foi arquivado em 1995, mas permite ver que Bolsonaro tem essa implicância pessoal mesmo, há muito tempo”, analisa Luciana Landgraf, cientista social e doutoranda em Antropologia.
Em novembro de 2020, já como presidente, Bolsonaro voltou a questionar a demarcação da TIY com um argumento “emprestado” dos tempos de ditadura, alegando risco à soberania nacional. “Ele não mudou de ideia esse tempo todo. Hoje a população yanomami é de cerca de 30 mil, mas ele continua falando em 10 mil, que é o dado da época do projeto. O mundo andou, mas ele não”, enfatiza Landgraf.
Apoiadores e cúmplices
Bolsonaro não agiu sozinho. Marcelo Xavier, nomeado por ele para a Presidência da Funai, defendeu abertamente a aprovação da mineração e do garimpo em TIs.
A ex-ministra e hoje senadora Damares Alves (Republicanos-DF) é alvo de pedido de cassação e ações na Procuradoria-Geral da República (PGR) por possível participação no genocídio yanomami. Em junho de 2020, Damares teria pedido que Bolsonaro vetasse leitos de UTI e água potável para os indígenas em plena pandemia.
Outro senador e ex-ministro, Sergio Moro, também é acusado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) de fragilizar a Funai, por meio de nomeações polêmicas e exonerações como a de Bruno Pereira – em alinhamento com o projeto de Bolsonaro.
Além de desmontar a estrutura de fiscalização e proteção ambiental, Ricardo Salles (PL-SP), ex-ministro do Meio Ambiente e eleito deputado federal em 2022, era um dos pontos de interlocução entre o governo de extrema direita e o garimpo. Em agosto de 2020, meses após a reunião ministerial em que defendeu “passar a boiada”, Salles fez reuniões com garimpeiros em Jacareacanga (PA) e disse que era hora de parar “de fazer de conta que os indígenas não querem garimpar”.
Um dia após a visita a Jacareacanga, em que foi alvo de protestos de indígenas Munduruku, o ministro mobilizou um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) para levar garimpeiros a Brasília.
“Os militares fizeram vista grossa e apoiaram essa agenda. Em minha pesquisa, não encontrei nenhuma voz dissidente, nenhuma disputa interna sobre o tema [mineração em TIs]”, ressalta a historiadora Ana Carolina Reginatto, autora do relatório “Quem é quem no debate sobre mineração em terras indígenas”, de 2022.
“O [vice-presidente Hamilton] Mourão, como presidente do Conselho Nacional da Amazônia, se reunia com garimpeiros e foi um dos disseminadores de fake news contra os indígenas. O Augusto Heleno [ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional] autorizou garimpo em regiões de fronteira, em Roraima”, exemplifica.
Segundo apuração da Folha de S. Paulo, Heleno autorizou em dezembro de 2022 a exploração de ouro em uma área de 9,8 mil hectares próximo à TIY. O mesmo jornal noticiou que militares podem ter sido comprados pelo garimpo na TIY já no início do governo Bolsonaro.
“Quando tem proteção territorial, com operações a cada dois ou três meses, fica inviável para os donos de garimpos conseguirem a reposição dos equipamentos, porque eles são muito caros. Tem uma publicação do MPF [Ministério Público Federal] que estima o valor mínimo de uma draga em R$ 600 mil”, observa a cientista social Luciana Landgraf.
“Então, havia uma certeza de impunidade, baseada nos discursos do Bolsonaro e do Mourão. Como sabiam que o governo não iria fazer nada para impedi-los, os garimpeiros investiram pesado”, completa.
Em junho de 2019, Mourão recebeu José Altino Machado, liderança histórica do garimpo na Amazônia, para discutir “soluções” para a exploração de ouro na região. Um ano depois, o general recebeu das mãos de Machado um documento no qual garimpeiros e agentes financeiros assumiam o compromisso de “combater a ilegalidade”, desde que o Planalto garantisse o fim das ações de controle e da destruição de equipamentos.
Neste segundo encontro, também estava Dirceu Frederico Sobrinho, dono da mineradora da FD’Gold e presidente da Anoro – que seria preso em 2022 por comercializar toneladas de ouro ilegal da Amazônia. Sobrinho era um dos empresários do setor mais próximos da alta cúpula do último governo. Ele também se reuniu com Salles, Bento Albuquerque, ex-ministro de Minas e Energia (MME), e Onyx Lorenzoni, então na Casa Civil.
As articulações entre garimpo e governo Bolsonaro se davam quase sempre por meio da Secretaria de Geologia, Mineração e Transformação Mineral (SGM). Entidades empresariais como Anoro, Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), Associação Brasileira do Alumínio (Abal), Associação Brasileira de Metais Preciosos (Abramp), Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa Mineral e Mineração (ABPM) e Agência para o Desenvolvimento e Inovação do Setor Mineral Brasileiro (ADIMB) tinham trânsito livre no MME.
Figuras políticas de regiões dominadas por garimpos clandestinos também eram interlocutores frequentes do Planalto. Um dos mais proeminentes foi Wescley Tomaz (PSC-PA), o “vereador dos garimpeiros” de Itaituba. Embora seu cargo não tivesse relevância nacional, Tomaz participou de dezenas de reuniões com a ANM, com ministros e até com o presidente, escancarando as portas do Executivo para o lobby do setor.
Itaituba concentrou 75% de todo o ouro classificado como ilegal no Brasil em 2021 e 2022, de acordo com estudo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Elogiado por Bolsonaro durante a pandemia, o prefeito Valmir Climaco (MDB-PA) ganhou as manchetes em diferentes momentos no último governo – por declarações machistas, por seu iate de R$ 12 mihões e pela longa ficha de processos. Entre os possíveis crimes ambientais, há uma acusação por extrair ouro sem licenciamento no Garimpo dos Palmares, em Maués (AM). Em outra denúncia movida pelo MPF, Climaco foi acusado por incitar a população a receber servidores da Funai “a bala”.
Os elos entre bolsonarismo e garimpo ilegal na Amazônia também foram fortalecidos pela atuação do governador de Roraima, Antonio Denarium (PP). Desde o primeiro mandato, ele busca ampliar autorizações para a atividade por meio de PLs na Assembleia Legislativa, e chegou a sancionar lei – derrubada pelo Supremo – para proteger equipamentos de garimpo ilegal. Em fevereiro deste ano, a irmã de Denarium, Vanda Garcia, foi alvo de operação da PF por suposta lavagem de dinheiro oriundo da extração clandestina de ouro.
“Na Amazônia, muitas vezes quem está no cargo de deputado, senador ou governador é o mesmo que está liderando frente de grilagem, garimpo em terra indígena, ocupação ilegal em unidade de conservação. É um modelo de apropriação privada do bem público que é parte da dinâmica de fronteira”, observa o geógrafo Marcos Pedlowski, professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), onde pesquisa mudanças da cobertura vegetal e uso da terra na Amazônia, entre outros temas.
“Com Bolsonaro, isso se intensificou porque houve uma retomada do projeto militar da década de 1970, com uma visão de desenvolvimento ultrapassada e antinacional e o incentivo a atividades criminosas”, completa.
No Congresso Nacional, parlamentares da base de apoio de Bolsonaro, favoráveis à mineração em TIs e à “flexibilização” do licenciamento ambiental, formaram em 2021 o Grupo de Trabalho de Revisão do Código de Mineração. A pauta uniu tanto representantes da ala “ideológica” quanto aqueles autodenominados liberais ou “pragmáticos”.
“Na prática, essa divisão não é tão estanque”, pondera Ana Carolina Reginatto. “Quando analisamos o comportamento do Ibram, por exemplo, mesmo que eles publicamente falem que são contra o garimpo em terras indígenas, entre seus pares já dão como certa a abertura dessas áreas. Inclusive, mineradores já têm direitos assegurados sobre algumas áreas, ainda que pequenas, dentro de terras indígenas”, observa.
Entre 2019 e 2022, executivos do Ibram foram recebidos 26 vezes na SGM.
“Os garimpeiros esperavam a legalização do garimpo em terra indígena no último governo, e ficaram decepcionados porque Bolsonaro não conseguiu cumprir essa promessa de campanha”, adverte a pesquisadora Luciana Landgraf.
O PL nº 191/2020, principal aposta para tentar regulamentar a mineração em TIs, foi apresentado pelo governo Bolsonaro em fevereiro de 2020. O projeto não impõe limite máximo explorável nem exige estudos prévios sobre os impactos ambientais dos empreendimentos minerários. Embora preveja oitiva nas comunidades para transmitir informações aos indígenas, o texto não estipula a possibilidade de veto nem os protocolos a serem seguidos na consulta.
“É uma aberração. O Brasil é signatário da Convenção nº 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho], que determina a necessidade de consulta prévia, livre e informada em qualquer projeto que afete grupos indígenas”, reforça Landgraf.
Parlamentares de oposição, o MPF e lideranças indígenas se manifestaram contra a proposta do Executivo, alegando que, na prática, as comunidades afetadas não teriam instrumentos para barrar as atividades minerárias em seus territórios. A pressão contribuiu para “congelar” o PL, que até hoje não foi votado.
Propina em barras de ouro
Além de contar com apoio das pastas do Meio Ambiente, da Justiça e Segurança Pública, da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e das Minas e Energia, o avanço do garimpo no governo Bolsonaro também está associado a um escândalo de corrupção envolvendo o Ministério da Educação (MEC).
Em junho de 2022, o ex-ministro e pastor presibiteriano Milton Ribeiro foi preso após a divulgação de um áudio no qual dizia liberar verbas do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) mediante a indicação de dois pastores evangélicos, a pedido de Bolsonaro. As negociações envolviam a cobrança de propina em barras de ouro. Os pastores Gilmar Santos e Arilton Moura teriam criado um balcão de negócios dentro do MEC com o conhecimento do ministro e do presidente.
Em depoimento, o prefeito de Luís Domingues (MA), Gilberto Braga (PSDB-MA), relatou um pedido de propina feito em Brasília, em 7 de abril de 2021, após reunião no MEC. O pastor Arilton Moura teria cobrado 1 kg de ouro em troca de verba para construção de escolas e creches no município. As denúncias foram endossadas por relatos semelhantes de outros prefeitos, do Maranhão, São Paulo e Goiás, indicando que as práticas de corrupção e superfaturamento eram parte do modus operandi daquela gestão.
Chama atenção que o prefeito de Centro Novo (MA), Júnior Garimpeiro (PP), citado por possível envolvimento no caso, havia sido preso em setembro de 2021 em uma investigação sobre garimpo ilegal. De acordo com a PF, a quadrilha que ele integrava tinha “grande poderio econômico e político” e desmatou 60 mil hectares sem autorização e usou substâncias tóxicas para a extração de ouro em grande escala.
Os pastores Santos e Moura estiveram em Centro Novo e encontraram-se com o prefeito quatro meses antes da prisão.
Júnior Garimpeiro foi solto em dezembro de 2021, e cinco dias depois foi recebido pelo então ministro Milton Ribeiro em um jantar reservado. Quem promoveu o encontro em Brasília, em dezembro de 2021, foi o pastor Arilton Moura.
Esse quebra-cabeças, no entanto, permanece incompleto, e o caso continua sob investigação da Polícia Federal.
O caminho das pedras
A legislação brasileira proíbe garimpo em terras indígenas e em áreas maiores que 50 hectares, mas é flagantemente desrespeitada. Só na TI Munduruku, no Pará, a extração ilegal de minérios desmatou mais de 2 mil hectares entre 2019 e 2020.
Para que um garimpo seja considerado legal, é preciso haver uma permissão ativa para lavra garimpeira, concedida pela ANM.
Em Roraima, palco do genocídio yanomami, só há duas permissões ativas – ambas concedidas durante o governo Bolsonaro para pessoas ligadas à exploração ilegal de minério, segundo apuração da Folha de S. Paulo. Um dos beneficiados foi Rodrigo Cataratas, citado no início da reportagem, cujas empresas teriam movimentado R$ 200 milhões em dois anos com operações ilegais na TIY.
Questionado sobre a participação de garimpeiros em atos antidemocráticos e no genocídio yanomami, o geógrafo Marcos Pedlowski chama atenção para os interesses milionários e transnacionais envolvidos na atividade.
“A demonização do garimpeiro, do trabalhador, esconde o grande capital envolvido. Como no caso do narcotráfico, nas grandes cidades, a repressão acontece nas favelas, em pequenas bocas de fumo. Não resolve se a gente não olhar os grandes grupos econômicos internos e como se relacionam com as grandes corporações globais”, adverte.
“Os atos golpistas e toda essa situação com os yanomami mostram que a gente precisa separar. Uma coisa é a massa de manobra, a maioria dos garimpeiros que estão na ponta. Ainda que matem ou tenham atitudes bárbaras, eles são o ‘faroeste caboclo’: trabalhadores pobres que foram empurrados para aquela atividade. O que interessa é quem viabiliza o garimpo”, completa o professor da UENF.
O ouro extraído de garimpos só pode ser vendido ao Banco Central ou a instituições autorizadas, chamadas de Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários (DTVM). Porém, o documento que deveria comprovar a legalidade da origem do minério é autodeclaratório, e não há meios eficazes de fiscalização. Para “esquentar” o ouro ilegal, basta o garimpeiro migrar de uma área proibida ou sem autorização e vender o minério em uma zona de extração legal, por meio de intermediários – geralmente, uma cooperativa de garimpeiros.
Com essa simples manobra, metais clandestinos são inseridos no mercado internacional sob uma roupagem de legalidade. Só nos dois primeiros anos de governo Bolsonaro, 17,7 toneladas de ouro extraídos ilegalmente no Pará foram despejados no mercado financeiro, segundo estimativa do MPF. Um terço teria sido extraído de garimpos de Itaituba, Jacareacanga e Novo Progresso, onde estão aos TIs dos munduruku e dos kayapó.
“Existe uma cadeia global, de contrabando, que sustenta a extração ilegal de minério. Grandes corporações de tecnologia estão com as mãos sujas de sangue indígena, e o governo brasileiro nunca colocou pressão lá fora, nas grandes empresas, exigindo controle”, ressalta Pedlowski.
Em 2022, a Repórter Brasil apurou que as quatro empresas mais valiosas do mundo – Apple, Google, Microsoft e Amazon – usaram ouro ilegal de TIs brasileiras. Elas foram o destino final do produto de duas refinadoras, a italiana Chimet e a brasileira Marsam, que adquiriram metais extraídos de garimpos clandestinos.
Um ano antes, a mesma ONG havia mostrado que a principal exportadora de ouro do país, BP Trading, tinha negócios com empresas investigadas por comprar ouro oriundo de TIs.
Nos primeiros dias de mandato, Lula revogou o decreto de Bolsonaro para desenvolver a “mineração artesanal”, nomeou lideranças indígenas para a Funai e o Ministério dos Povos Originários e promoveu uma operação de guerra contra os invasores da TIY. Porém, frear o avanço dos garimpos clandestinos exigirá um esforço permanente e de longo prazo.
“O governo Lula tem um desafio enorme no combate ao garimpo ilegal. O bolsonarismo ainda está muito forte e não foi varrido das instituições e do Congresso Nacional – que continua muito conservador e impregnado dessa agenda de destruição”, observa a historiadora Ana Carolina Reginatto. “Mourão foi eleito senador; Salles, deputado. O governador reeleito de Roraima também deu declarações pró-garimpo mesmo após o escândalo que está acontecendo com os yanomami. Então, vai ser uma luta ferrenha”.
Outra dificuldade apontada pela entrevistada é que os maiores garimpos da Amazônia contam com pessoas fortemente armadas. “E há militares que continuam apoiando essa agenda, porque têm uma vinculação ideológica com ela”, lembra.
Outro lado
Confira as alegações dos indivíduos e empresas citados nesta reportagem por possível associação com atividades ilegais.
George Washington de Oliveira: a defesa confirmou em vídeo que seu cliente integrava um grupo de pessoas insatisfeitas com o resultado das eleições, que comprou dinamites para explodir um “poste de energia”, como forma de protesto. “Eles estavam desesperados, com medo de ter que comer cachorro”, disse o advogado Jorge Chediak, reforçando que George Washington não tinha antecedentes criminais.
Rogério Amorim Macedo da Silva: disse à polícia que os R$ 150 mil seriam decorrentes da venda de ouro e destinados a pagar funcionários. A reportagem não conseguiu contato.
João José de Sousa: confirmou recebimento do e-mail enviado pela reportagem, mas não respondeu aos questionamentos.
Rodrigo Cataratas: não respondeu os questionamentos enviados pela reportagem. A defesa enviou uma nota ao portal G1, em agosto de 2022, informando que o cliente não responde ação penal por garimpo ilegal. “A investigação feita em relação a Rodrigo Mello é questionável, e a defesa tem lutado arduamente para demonstrar que ele tem sido alvo de perseguição descabida”, acrescenta a nota.
Enric Lauriano: A ONG Repórter Brasil conversou por telefone com ele em janeiro e perguntou sobre os pedidos de PIX e sua participação nos ataques de 8 de janeiro. O empresário disse que não queria se manifestar. Esta reportagem entrou em contato com Lauriano por meio da rede social Instagram, mas a conta foi removida dois dias depois e não houve resposta aos questionamentos.
Ricardo Pereira da Cunha: ao portal O Antagonista, disse conhecer George Washington, mas não ter relação com o atentado frustrado em Brasília. Ele teria deixado o acampamento do Setor Militar Urbano, em Brasília, no dia 23 de dezembro.
José Medeiros: não respondeu aos questionamentos da reportagem.
Dirceu Frederico Sobrinho e FD’ Gold: em resposta à Repórter Brasil em fevereiro, negaram qualquer prática ilegal na compra de ouro e disseram ser vítimas de “violações de direitos” por agentes públicos. Afirmaram que desconhecem investigações que os relacionem com garimpo ilegal na TIY.
Milton Ribeiro: em nota à imprensa, a defesa alega que o ex-ministro “sempre pautou sua vida, privada e pública, pela ética, honestidade e retidão e jamais cometeu qualquer desvio e ou infração penal dentro e ou fora do exercício do cargo público que ocupou”.
Gilmar Santos: em suas redes sociais, afirmou: “Nego, peremptoriamente, a falácia de que pedi, recebi, mandei, pedi, ou, de alguma forma, contribuí, para o recebimento de propina, ou qualquer outro ato de corrupção junto ao Ministério da Educação, bem como ao atual ministro titular da referida pasta”. A reportagem não conseguiu contato.
BP Trading: afirmou à ONG Repórter Brasil que “mantém rigorosos controles quanto à origem do mineral adquirido” e que é “condição inafastável para a realização de suas operações que o minério esteja acompanhado da devida documentação pertinente”.
As alegações de Apple, Google, Microsoft e Amazon estão detalhadas em matéria da Repórter Brasil.
A reportagem não conseguiu contato e não teve acesso às alegações de Arilton Moura, Junior Garimpeiro e Valmir Climaco. O espaço está aberto para manifestações.
Daniel Giovanaz é repórter e produz matérias especiais para o Comitê Nacional em Defesa dos Territórios frente à Mineração.
Jornalista e mestre em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Trabalhou por cinco anos no portal Brasil de Fato, como repórter, editor e correspondente internacional. Autor dos livros “O oligopólio da RBS” (Insular, 2017) e “Dossiê Lava Jato: um ano de cobertura crítica” (Outras Expressões, 2018). Coordena projeto, no escritório latino-americano da organização Repórteres Sem Fronteiras, para aprimoramento dos mecanismos de proteção a jornalistas no continente.
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