Em matéria noticiada no último dia 24 de julho, o presidente do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), Raul Jungmann, reivindicou: “o país [Brasil] não é ‘mais Brasil colônia, em que cortes estrangeiras exigiam extraterritorialidade e que seus nacionais fossem julgados por lá’”. [1] 

Jungmann se refere a ações que buscam reparações aos danos socioambientais resultantes do rompimento da barragem do Fundão, de responsabilidade da Samarco (joint venture entre as empresas supracitadas), no município de Mariana, Minas Gerais. Nesta narrativa, as ações judiciais que ocorrem contra as mineradoras Vale e BHP Billiton em cortes da Inglaterra e Holanda violariam a soberania do país e do seu sistema de justiça. 

A estratégia adotada pelo Ibram e pelas mineradoras traz a argumentação de que as mais de 700 mil pessoas atingidas que protocolam ações em tribunais da Inglaterra e Holanda junto aos municípios afetados pelo rompimento da barragem do Fundão  estão recebendo o devido amparo através da Fundação Renova e das decisões do sistema judiciário brasileiro. A afirmação de Jungmann, ao buscar enfatizar a legitimidade da justiça brasileira, repete estratégia já utilizada por outras empresas do setor extrativista. 

Por isto, as ações judiciais que ocorrem contra as mineradoras Vale e BHP Billiton em cortes da Inglaterra e Holanda violam a soberania do país e do seu sistema de justiça. As ações buscam reparações aos danos socioambientais resultantes do rompimento da barragem do Fundão, de responsabilidade da Samarco (joint venture entre as empresas supracitadas), no município de Mariana, Minas Gerais.

No entanto, o Ibram busca se opor a uma estratégia que já vem sendo articulada há anos por vítimas de violações de Direitos Humanos contra empresas transnacionais, e que vem sendo mobilizada pelos atingidos da Vale e BHP Billiton . Dado o cenário de não-responsabilização de empresas transnacionais por conta de suas violações de Direitos Humanos e Direitos da Natureza  – nas quais se inserem os crimes-tragédias socioambientais –, as vítimas dessas violações já executaram a abertura de processos tanto nos países-sede das empresas violadoras, quanto em outros países onde as empresas têm escritório, entendendo que as filiais das empresas representam parte da empresa como um todo e podem ser responsabilizadas.

A afirmação de Jungmann, preenchida de uma retórica pretensamente nacionalista e soberanista que busca isentar as empresas da responsabilização, que poderia encontrar ecos até em setores ditos progressistas, busca reduzir os riscos de condenação e produção de precedentes jurídicos que permitam as devidas reparações individuais, coletivas e à Natureza resultante das violações de direitos e ecocídios provocados pelo setor extrativista.

Além disso, é risível o discurso supostamente anticolonial do presidente do Ibram.  Ainda que a forma político-econômica da colônia não exista em seu sentido estrito, é a estrutura histórica da colonialidade que organiza a dinâmica da exploração mineral no mundo – e, por consequência no Brasil. O setor mineral, caracterizado pela exportação de bens minerais não beneficiados e de baixo valor agregado, é um dos agentes políticos na perpetuação da posição subalterna e dependente do Brasil enquanto exportador de matérias-primas.  Irônico e contraditório: o representante de um setor que se ampara numa dinâmica econômica que remete à economia colonial afirma que o Brasil não é colônia. 

Tendo em perspectiva que dentre as mais de 700 mil pessoas atingidas, estão integrados povos indígenas e comunidades quilombolas, estamos falando de um crime-tragédia que tem no racismo ambiental uma das justificativas de sua ocorrência e dos limites à reparação. A retórica pouco convincente de Jungmann ofusca como a reprodução da mineração se sustenta na violência racial, se utilizando de hierarquias racialmente determinadas para valorar o direito à vida, à terra e à soberania política de quem é vitimado pela mineração – isso é a pura reconstrução da lógica colonial na pós-colônia.

Nuances da disputa jurídica

Principalmente em casos envolvendo o setor extrativista, a luta por responsabilização tem o sentido de reafirmar a autonomia e soberania dos povos atingidos em relação aos territórios destruídos pelas atividades exploratórias das grandes corporações transnacionais. Por outro lado, existe também um projeto político em disputa como plano de fundo desta disputa: teriam as empresas a legitimidade de explorar os recursos da Natureza de forma que se mantivesse o padrão de destruição dos modos de vida, de cidades inteiras e de ecossistemas em sua totalidade sem que elas reparem aos indivíduos e coletividades e sem que restaurem as condições de reprodução da Natureza às condições mais próximas possíveis do existente antes dos crimes-desastres?

O caminho jurídico não é um caminho sem controvérsias. As empresas se utilizam de dois principais mecanismos para invalidar as demandas extraterritoriais: a) a tese do foro non conveniens, que costuma alegar que os países outros que não aquele onde aconteceram as violações de direitos não têm jurisdição para julgar um caso, pelo motivo de o evento não ter ocorrência em seu espaço territorial; b) a tese do véu corporativo, no qual a empresa busca se desresponsabilizar das ações de sua filial em outro país afirmando se tratar de diferentes empresas.

No caso específico as ações contra a BHP Billiton e Vale no Reino Unido, o que parece estar em voga é o primeiro mecanismo, que se divide em duas estratégias: a) o Ibram questiona a legitimidade de as mais de 700 mil pessoas e os municípios atingidos pelo rompimento da barragem de requererem reparação em cortes no exterior; b) o instituto também questiona a legitimidade constitucional dos municípios de serem proponentes de ações de reparação fora da jurisdição da justiça brasileira. Ambos são movimentos que, politicamente, buscam restringir a capacidade de os grupos e atores atingidos disputarem a amplitude, a materialidade e a efeitvação de seus direitos.

Por casos similares a este, desde 2014 se discute no Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas a construção de um Tratado Vinculante sobre Empresas Transnacionais e Direitos Humanos. Impulsionado por organizações de diferentes partes do mundo, o tratado tem a intenção de responsabilizar as empresas por violações aos direitos humanos e ambientais em relação às atividades das empresas transnacionais e de suas cadeias de suprimento. Uma das legislações que é tida como referência para este debate é a Lei do Dever de Vigilância da França, aprovada em 2017, que exige transparência sobre a atividade das empresas francesas em todos os territórios em que elas têm atividades, tornando-as passíveis de punição em casos de violações de direitos.

De qualquer forma, quais são os riscos da argumentação do Ibram, visto que ainda não existe a regulação das empresas transnacionais no nível das Nações Unidas e a disputa extraterritorial tem sido um mecanismo contraofensivo importante em relação às empresas? A partir do Caso Chrevon, referente ao derramamento intencional de petróleo na Amazônia Equatoriana, podemos elaborar possibilidades.

A disputa extraterritorial no Caso Chevron/Texaco

A disputa extraterritorial tem sido uma das características mobilizadas pela União dos Afetados pela Texaco (UDAPT, em sua sigla em espanhol) para garantir a reparação dos danos causados ao ambiente e às comunidades indígenas e camponesas atingidas pela contaminação de petróleo que perdura até os dias de hoje na Amazônia equatoriana[2] .O início do litígio judicial acontece 1993, já nos Estados Unidos (EUA), porque a Texaco, empresa responsável pela contaminação, já havia encerrado suas atividades no Equador. Dois argumentos da empresa logo chamam atenção: a) a tese do foro non conveniens, que argumenta que os EUA não teriam jurisdição sobre o caso e, portanto, o julgamento deveria ocorrer no sistema judicial equatoriano e; b) a declaração de confiança da empresa ao sistema judicial equatoriano, que a Texaco afirmava ter condições de prosseguir com um julgamento isônomo.

Após dez anos de processo, a decisão da justiça de Nova York acabou por favorecer a empresa: acolhe o foro no conveniens e diz que a empresa deveria se submeter à sentença equatoriana, junto ao fato de que a matriz estadunidense da Texaco não poderia ser responsabilizada pelo caso – apenas a filial equatoriana (o que é uma aplicação do véu corporativo). No entanto diferentes estratégias foram mobilizadas pela empresa durante esse tempo. Acordos secretos que reduziam a responsabilidade da empresa na remediação e reparação dos danos foram assinados com diferentes governos que passavam pela presidência do país.

Quando o caso chegou na justiça equatoriana, em 2003, a Texaco havia recentemente sido comprada pela Chevron e a empresa lançou mão de outra estratégia: processa o Estado equatoriano em cortes arbitrais nos EUA e em Haia, argumentando estar sendo vítima de uma perseguição que mobiliza o poder judiciário do país e que impede um julgamento justo do caso. Além disso, argumenta estar sendo vítima de um processo de extorsão. No contexto nacional, a Chevron argumenta que não é a Texaco e que, portanto, não pode assumir o ônus das atividades da Texaco.

Ao longo do processo, mais de 250 mil páginas de provas são elaboradas, com dados fornecidos pela própria empresa – e que, hoje, seguem em posse da UDAPT. Existe um vídeo que mostra a tentativa desesperada da empresa de produzir provas em seu favor, o que simplesmente não acontece dada a dimensão do dano. A tentativa de manipular provas e descredibilizar o sistema de justiça segue até que em 2011, a corte arbitral de Haia exige que o Equador se exima de qualquer sentença sobre a Chevron – curiosamente essa sentença sai dias antes da condenação que decide por exigir diferentes medidas de reparação que somam US$9,8 bilhões de dólares, seguindo a demanda dos atingidos: a restauração do ambiente e das condições de vida aos níveis mais próximos do que existia antes da atividade petroleira.

Como a empresa já não tinha escritório no Equador, retomam-se as disputas extraterritoriais: EUA, Canadá, Brasil e Argentina são palcos da tentativa de homologar a sentença condenatória. No Brasil e na Argentina, os processos não avançam muito. Neste último, o Ministério Público do país se posiciona contrariamente à homologação da sentença por receio do impacto econômico que poderia provocar a punição a uma grande empresa do petróleo – o que se apresenta como efetiva colaboração do Estado com o capital transnacional. Nos EUA, a Chevron consegue, através de um juiz tendencioso, validar um depoimento que, anos depois é assumido enquanto fraudulento pelo depoente: ele dizia que o processo no Equador estava viciado. No Canadá, onde se tem o melhor resultado, com um julgamento que não valida o véu corporativo e reconhece o direito de homologação de sentença, se encontra um único obstáculo: a sentença estadunidense que dizia que o processo equatoriano seria viciado teria o mesmo peso que a sentença equatoriana com base nos acordos de cooperação jurídica entre os países. Não se ouviriam os atingidos, não se julgariam as provas; isto determinaria o resultado.

Qual a lição?

A breve descrição do Caso Chevron/Texaco não nos dá esperanças de que a extraterritorialidade vai ser o mecanismo que viabilizará a pela reparação dos danos. No entanto, o que o caso nos explica é que as empresas responsáveis pelos crimes-tragédias mobilizarão diversos mecanismos para evitar a condenação. Essas estratégias envolvem valorizar o sistema judicial quando necessário, como fez a Texaco e como faz Jungmann, mas deslegitimá-lo quando for interessante mudar o discurso . A posição do Ibram que supervaloriza o sistema judicial brasileiro para evitar processos no exterior vem do mesmo lugar, isto é, das mineradoras, que têm preferido acordos judiciais individuais com as pessoas atingidas com a justificativa de que a justiça é lenta e ineficiente.

Um dos elementos mais discutidos em relação ao Caso Chevron/Texaco é que ele nunca representou somente um risco à Chevron, mas a todo o setor extrativista que lucra com a destruição de vidas e dos ecossistemas e teme um precedente que penalize a destruição provocada por suas atividades. A condenação da Vale e da BHP Billiton nas cortes inglesas abriria um precedente que viabilizaria consolidar uma estratégia jurídica capaz de garantir mais autonomia aos territórios e povos e fortalecer os movimentos de regulação das atividades extrativistas. O processo na Inglaterra tem um pressuposto importante: ele seria válido, inclusive, se a condenação nas cortes brasileiras não for suficiente para reparar os danos causados. 

Outra contradição explícita está na forma como as mineradoras atuam em comparação a como elas buscam restringir a atuação das pessoas atingidas. Na mesma semana em que Raul Jungmann advoga pela impossibilidade de requerer direitos em cortes estrangeiras, a BHP Billiton, associada ao Ibram, foi impedida pela justiça inglesa de financiar a tese defendida pelo presidente do instituto. Ou seja, o questionamento à articulação internacional das pessoas atingidas faz parte de uma estratégia global das mineradoras de retirar as vítimas de suas atividades dos espaços de disputa e reivindicação política legítimos e, assim, monopolizá-los.

O direito ao acesso à justiça, e a garantia dos direitos fundamentais dos povos sobre suas terras em contraponto aos interesses de acumulação das mineradoras deve se sobrepor. Por isso, é importante questionar os movimentos que buscam restringir a responsabilidade extraterritorial das empresas e fortalecer as táticas de luta e enfrentamento produzidas pelos movimentos de atingidos que, há muito, lutam contra o modelo de produção extrativista. Além disso tudo, existe uma razão principiológica que valida a disputa para além do Brasil: a luta contra o extrativismo predatório é uma luta internacionalista – e ao redor do mundo ela deve ecoar.

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Vitor Costa é Doutorando em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais (IRI) da PUC-Rio.  E pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – IBASE

O Ibase integra a secretaria operativa do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios frente à Mineração deste a sua criação.

[1] Vitor Costa agradece aos colegas Bruno Milanez e Dani Dias pelos comentários ao texto.

[2]  Para ver uma descrição detalhada do Caso Chevron/Texaco, consultar: COSTA, Vítor de Souza. As bases políticas da impunidade empresarial no capitalismo global: o Caso Chevron no Equador. 2020. 174f. Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) – Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2020.

 

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