Por Tatiana Ribeiro de Souza e
Karine Gonçalves Carneiro1
No dia 08 de agosto de 2018, realizou-se na Justiça Federal de Belo Horizonte uma “Sessão Solene de Conciliação”, no caso do desastre de Fundão (que afetou toda a região de Mariana/MG e da Bacia do Rio Doce), para que o juízo da 12ᵃ Vara decidisse acerca de dois acordos apresentados pelas partes envolvidas, sendo um chamado de “Termo Aditivo” (pois se refere a um aditamento ao Termo de Ajustamento Preliminar – TAP) e o outro chamado de “TAC Governança” (porque altera o Termo de Transação e Ajustamento de Conduta – TTAC – que vem sendo utilizado para a implementação dos programas de reparação negociados em uma das Ações relativas ao caso).
Após examinar a celebração do Termo Aditivo ao Termo de Ajustamento Preliminar e o pedido de homologação judicial do Termo de Ajustamento de Conduta – TAC Governança, o juízo da 12ᵃ Vara proferiu sentença conjunta, homologando integralmente este e parcialmente aquele, fazendo, em relação ao Termo Aditivo “ressalvas judiciais”, sob o argumento de tratarem-se de “balizas interpretativas”.
Em razão do consenso institucional dos órgãos de governo e do sistema de justiça quanto ao TAC Governança, que resultou na sua homologação integral, reservaremos a presente análise para o conteúdo decisório relacionado ao Termo Aditivo [ao Termo de Ajustamento Preliminar – TAP], que foi resumido na Sentença (p.
2) como o acordo por meio do qual os signatários
“(…) definiram as questões relacionadas ao seu desenho institucional e os experts correspondentes, incluindo a contratação das assessorias técnicas aos atingidos, a realização de audiências públicas e de oitivas previas, tal como determinado no Termo de Ajustamento Preliminar – TAP. Em substituição à INTEGRATIO, as partes indicaram como experts o FUNDO BRASIL DE DIREITOS HUMANOS e a FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS – FGV, os quais hão de atuar integrada e coordenadamente”
Depois de esclarecer que a decisão homologatória foi antecedida de prazo para que os demais legitimados processuais admitidos na Ação Civil Pública se manifestassem sobre o Termo Aditivo, o magistrado acrescenta que resolveu o “impasse” envolvendo a contratação da Fundação Getúlio Vargas – FGV, autorizando, com ressalvas, a sua efetivação. Sobre este ponto, vale destacar que o “impasse” ao qual se refere o magistrado foi gerado após a Promotoria das Fundações do Ministério Público do Rio de Janeiro – MPRJ não autorizar a contratação da FGV pela Samarco, para avaliar os danos socioeconômicos causados pelo desastre de Fundão, em razão do flagrante conflito de interesses devido às relações existentes entre a Vale (controladora da Samarco e uma das responsável pelas reparações dos danos) e a FGV, que inclusive possuía um representante da mineradora em sua curadoria.
A maneira pela qual o juízo da 12ᵃ Vara considera ter resolvido o conflito de interesses na contratação da FGV para produzir diagnóstico que implicará em despesas para a Vale, com quem mantém relações institucionais, foi vedando às empresas rés (Samarco, Vale e BHP) que, sem a sua prévia e expressa autorização: celebrem novos contrato de locação, ou mesmo termos aditivos ou prorrogações àqueles já vigentes; realizem qualquer tipo de doação ou subvenção à FGV; ou que integrem, componham ou participem de comissão, composição interna ou órgão diretivo dela.
O convencimento do magistrado acerca da capacidade de neutralizar, por meio de medidas restritivas temporárias, o conflito de interesses existente entre o trabalho a ser realizado pela FGV e as suas ligações econômicas com a Vale, pode ser constatado na determinação de que tais restrições sejam expressamente consignadas no contrato entre a Samarco e a FGV, conferindo o prazo de 15 dias para que contrato celebrado entre elas seja aditado e apresentado em juízo. Pelo teor da decisão, o juízo supõe que a suspensão temporária dos negócios entre entidades historicamente parceiras (Vale e FGV) será suficiente para garantir que a entidade que produzirá o referido diagnóstico (e que possui relações econômicas com a responsável pelos custos dessa reparação) será totalmente imparcial ao realizar o diagnóstico sobre danos socioeconômicos gerados e, consequentemente, seus custos.
Em relação ao conteúdo do Termo Aditivo, especialmente sobre os princípios nele consignados, a decisão homologatória ressalta a existência de sintonia entre o documento e as normas internacionais que regem os Direitos Humanos, razão pela qual
ele é considerado na sentença como um “documento jurídico avançado”. De um modo geral, o Termo Aditivo é considerado pelo magistrado como apto a cumprir os seus propósitos, entretanto, ele alega que “algumas observações/ressalvas se fazem necessárias em relação ao enquadramento/’interpretação de determinadas cláusulas e normas, pois tal como formulado, não comporta homologação integral” (p. 5). De acordo com a sentença, as cláusulas que estão “a demandar revisão e controle judicial” são as que tratam da contratação das assessorias técnicas às pessoas atingidas, particularmente as que estabelecem os requisitos mínimos que as equipes e entidades devem preencher para atuarem na atividade de assessoria técnica.
Na visão do magistrado, existem dois problemas nas cláusulas que estabelecem os requisitos mínimos para a contratação das equipes e entidades que prestarão a assessoria técnica às pessoas atingidas: a ausência de critérios claros para a comprovação do tempo de existência da entidade (que deverá ser de no mínimo 3 anos) e a insuficiência do critério que visa a independência das equipes e entidades contratadas.
Em relação à inexistência de critérios claros sobre a comprovação do tempo de existência da entidade, o magistrado determina expressamente que tal comprovação “exige prova documental, idônea de dúvidas, nos termos da legislação civil” (p. 7), entretanto, veda a utilização de declarações unilaterais e testemunho como meio de prova.
Com relação à alegada “insuficiência” do critério que visa a independência das pessoas que integram as equipes e entidades contratadas para prestar assessoria técnica às pessoas atingidas, alega o magistrado que a exigência de independência em relação às empresas (tendo em vista a vedação da contratação de entidade que tenha celebrado contrato com as empresas rés nos últimos 3 anos) deve se estender às entidades não empresariais, nos seguintes termos: “Se é verdade que as assessorias técnicas devem ser independentes em relação às Empresas (cláusula 7.3, alínea “b”), o mesmo deve ocorrer em relação a agremiações partidárias, ONGs e movimentos sociais/religiosos.” (p. 8).
Entretanto, ao proibir a contratação de pessoas ligadas a agremiações partidárias, ONGs e movimentos sociais/religiosos, a decisão não apenas contraria o que foi acordado pelas partes no próprio Termo Aditivo, e que foram anteriormente
enaltecidos pelo magistrado, como não encontra amparo legal e constitui ofensa à Constituição. Ao impedir que membros de agremiações partidárias, ONGs, movimentos sociais e religiosos integrem as equipes de assessoria técnica às pessoas atingidas, a decisão homologatória fere direitos constitucionais fundamentais, tais como: a liberdade de manifestação do pensamento, sem qualquer restrição, sendo vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística (art. 5º, IV, e 220, §2º); não ser privado de direito por motivo de crença religiosa ou convicção filosófica ou política (art. 5º, VIII); a liberdade de expressão intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (art. 5º, IX); a liberdade de exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais a que a lei estabelecer (art. 5º, XIII); a liberdade de associação (art. 5º, XVII). Os direitos constitucionais ofendidos pela sentença homologatória também estão previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica –, tais como: liberdade de consciência e religião (art. 12); liberdade de pensamento e de expressão (art. 13); direito de reunião (art. 15); liberdade de associação (art. 16). Destarte, a decisão está sujeita ao controle de constitucionalidade e de convencionalidade, devendo, por isso, ser reformada.
Além de ofender direitos fundamentais, a vedação imposta pela sentença homologatória, para a contratação de integrantes das assessorias técnicas, afastaria as/os técnicas/os, que correspondem ao grupo de profissionais com maior número de defensores de direitos humanos e experiência com comunidades/povos vulneráveis. Diante disso, afastar esse perfil de profissional contraria os princípios adotados pelo Termo Aditivo, tais como: a centralidade das pessoas atingidas como eixo norteador de todas as atividades e medidas adotadas; a preocupação com a utilização de linguagem acessível e adequada às condições e à realidade das comunidades atingidas (que só poderá ser alcançada por meio da atuação de profissionais com experiência em áreas de conflito socioambiental); a observância ao direito fundamental à liberdade de associação e organização; a importância das relações sociais das pessoas atingidas na avaliação dos seus danos.
Ademais, não se pode impor às equipes a serem contratadas para assessorar as pessoas atingidas restrições que não são observadas nas contratações feitas pela Fundação Renova, que, na prática, atua no interesse das rés, embora estejam legalmente
sujeitas ao controle estatal para que não se desvie da sua finalidade. O rigor que se exige para a contratação das assessorias técnicas também não se observa no critério adotado para admitir a contratação da FGV, que estará sujeita a restrições nas suas ligações político/econômicas apenas durante o período de prestação de serviços como expert para o Ministério Público.
Se por um lado “a ninguém deve ser dado o direito de aproveitar-se ou mesmo beneficiar-se do Desastre de Mariana para […] difundir e/ou propagar sua crença ou sua ideologia política, ou, ainda, capitalizar-se financeiramente”, como propõe o magistrado, por outro lado, de ninguém pode ser subtraído o direito de expressar e manter a sua crença ou ideologia política. Enquanto a vedação imposta pela sentença homologatória não encontra respaldo legal, os direitos que se veem ameaçados por esta decisão encontram amparo constitucional e internacional, por meio dos tratados de Direitos Humanos.
Por fim, a imparcialidade das assessorias técnicas não está fundada na isenção política e religiosa dos seus integrantes, mas na independência deles em relação às empresas rés. Por essa razão, o processo de escolha e contratação das assessorias técnicas não pode obedecer aos requisitos arbitrários e inconstitucionais determinados pelo juízo da 12ᵃ Vara Federal de Belo Horizonte, sob pena de se aprofundar o desequilíbrio entre as pessoas atingidas e as empresas causadoras dos danos, além de se
configurar decisão ultra petita2, que deverá ser reduzida aos limites do pedido.
Análise desenvolvida pelas Profas. Dras. Tatiana Ribeiro de Souza e Karine Gonçalves Carneiro (do Programa de Pós-Graduação em Direito “Novos Direitos, Novos Sujeitos”, da Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP, e pesquisadoras do Grupo de Estudos e Pesquisas Socioambientais – GEPSA): “O conflito jurídico/político em torno do direito das pessoas atingidas à Assessoria Técnica Independente: a homologação do dia 08/08/18”
1.Professoras Doutoras do Programa de Pós-Graduação em Direito “Novos Direitos, Novos Sujeitos”, da Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP, e pesquisadoras do Grupo de Estudos e Pesquisas Socioambientais – GEPSA.
2 Diz-se de julgamento que concede além do que foi pedido, mais do que foi solicitado pelo autor da ação.
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