Mina da CBL em Fazenda Velha, no município de Araçuai./ Foto: Nilmar Lage

Cerca de 85% das reservas de lítio do Brasil estão no Vale do Jequitinhonha. As mineradoras afirmam que levarão desenvolvimento, mas os lucros não ficam na região, e os empregos gerados são temporários. A canadense Sigma deve consumir 42 mil litros de água por hora em uma região marcada pela escassez hídrica

Na contramão de países da América Latina, que estão nacionalizando a exploração de lítio em seus territórios, o governo brasileiro publicou no início do mês de julho um decreto que flexibiliza as exportações de lítio no Brasil. O decreto nº 11.120, assinado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) e pelo ministro de Minas e Energia, Adolfo Sachsida reduz o controle do Estado sobre as operações de comércio exterior de minerais e minérios de lítio e de seus derivados. A publicação acende um alerta sobre a exploração internacional do lítio e demais recursos minerais do Brasil, pois favorece empresas multinacionais como a Sigma Lithium, que tem um mega projeto de exploração do lítio no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais (leia aqui o decreto).

Dados do projeto Avaliação do Potencial de Lítio no Brasil, que é um estudo da região do médio rio Jequitinhonha, indicam que 85% das reservas de lítio do Brasil estão localizadas no Vale do Jequitinhonha. O governo diz que o Decreto nº 11.120 faz parte dos seus esforços para reduzir a burocracia no setor de mineração e atrair investimentos para regiões empobrecidas do país. A medida, além de não proteger a indústria nacional de lítio, permite que grandes corporações exerçam total controle para exploração do minério em regiões historicamente empobrecidas pela mineração, e marcadas pela escassez hídrica, como o Vale do Jequitinhonha. Além disso, a medida não atinge o cerne da questão, que é criar mecanismos para que a atividade mineradora gere riqueza para as populações das áreas mineradas.

De acordo com a professora da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), Aline Weber Sulzbacher, que desenvolve um projeto de pesquisa juntamente com o professor Matheus Kuchenbecker intitulado a “Questão Agrária e Mineração: Análise dos grandes empreendimentos no Vale do Jequitinhonha”, a captura do Estado pelas grandes corporações é assegurada pelo próprio governo federal ao limitar as ações de preservação do meio ambiente, desarticulando e sucateando os órgãos ambientais e entregando os territórios e bens naturais ao interesse do capital. O desrespeito aos valores culturais e os direitos dessas comunidades que retiram da terra seu sustento é histórico em Minas Gerais, e o decreto nº 11.120 vem ao encontro dessa política hegemônica do Estado de expropriação da natureza.

O decreto nº 11.120 revoga o Decreto Nº 2.413, de 4 de dezembro de 1997, responsável por submeter operações comerciais entre o Brasil e o exterior à anuência da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) até 2002, e o Decreto Nº 10.577, de 14 de dezembro de 2020, do próprio governo Bolsonaro, que ampliava a submissão até 2030. A norma expressa que, a partir de agora, a exportação e a importação do mineral “não estão sujeitas a critérios, restrições, limites ou condicionantes de qualquer natureza, exceto aqueles previstos em lei ou em atos editados pela Câmara de Comércio Exterior (Camex) ”, afirma o texto.

A mudança, feita sem qualquer debate com a sociedade, ou no Congresso Nacional, também retira a necessidade de aprovação prévia da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) para o comércio exterior de lítio, como funcionava antes da publicação do decreto nº11.120.

Enquanto isso, a Bolívia, Argentina, Chile e México vem realizando acordos para aumentar a produção do lítio na América Latina. Com exceção do Brasil, os demais países, governados por partidos de esquerda, vem analisando possíveis parcerias para o mineral. O chamado Triângulo do Lítio, formado por Bolívia, Argentina e Chile, concentram cerca de 65% das reservas mundiais do minério. Segundo dados do Serviço Geológico dos Estados Unidos, de 2021, o Brasil e México, apesar de possuírem reservas menores que os referidos países, concentram reservas de lítio consideráveis a nível mundial. Ainda de acordo com dados do Serviço Geológico dos Estados Unidos, publicados em 2021, o Brasil possui a sétima maior reserva de lítio conhecida no mundo. O total de recursos de lítio no país está estimado em 470 mil toneladas.

Considerando que a dependência de recursos não renováveis, especialmente a de combustíveis fósseis, é uma das maiores causas da crise energética mundial, o lítio desperta como uma das alternativas energéticas aos combustíveis fósseis, pois é a principal matéria-prima para produção de baterias e veículos elétricos. Além de veículos elétricos, o “petróleo branco” como é conhecido o mineral, tem sido utilizado em baterias de notebooks, tablets e smartphones. Além de sua importância para o avanço tecnológico e econômico, o mineral também é importante para a indústria farmacêutica. O carbonato de lítio (Li2CO3), por exemplo, é utilizado na psiquiatria para o tratamento de transtorno bipolar e de Alzheimer. A alta demanda tem impulsionado o avanço de grandes investimentos em projetos ao longo de toda a cadeia produtiva, desde a mineração, passando pelo processamento mineral e até a produção de componentes e baterias.

De acordo com o Movimento dos Atingidos por Barragens do Vale do Jequitinhonha, a partir de publicação do Decreto, e com a política de incentivo do governo Bolsonaro, empresas transnacionais intensificaram sua busca por direitos minerários no Norte de Minas e no Vale do Jequitinhonha, e diversas concessões foram deferidas pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). A professora Aline Weber Sulzbacher observa que essas grandes corporações acabam interferindo no destino de comunidades que vivem na região. “As populações resistem e denunciam os conflitos socioambientais decorrentes, e também apontam outros modelos de atividade produtiva e coletiva para geração de trabalho e renda no Vale do Jequitinhonha, respeitando suas experiências e especificidades”, afirma Aline Weber Sulzbacher.

O Lítio é do Jequitinhonha” 

Desde 2012 a Sigma Mineração vem realizando estudos no Vale do Jequitinhonha e em 2020 iniciou as obras para implantação de uma unidade de produção e beneficiamento de lítio no Vale do Jequitinhonha. Um dos projetos visa explorar lítio no município de Itinga, que possui cerca de 14 mil habitantes, em uma região semiárida de cerrado e banhado pelo Rio Jequitinhonha e Rio Itinguinha. Em Araçuaí, a cerca de 700 km de Belo Horizonte, a jazida está localizada na Área de Preservação Ambiental (APA) da Chapada do Lagoão, zona que hoje concentra em seu entorno diversas comunidades. Nessa área existem cerca de 139 nascentes, fontes de abastecimento das famílias que vivem no município, além da biodiversidade, e vegetação com árvores nativas como pequi e coqueiros que são utilizados na confecção de vassouras que contribui na geração de renda das famílias, e frutas do Cerrado que são importantes na alimentação das pessoas que vivem nessa área. A empresa Sigma informou que irá consumir 42 mil litros de água por hora, que serão retirados do rio Jequitinhonha, num município cuja população sofre com a escassez hídrica, e é abastecida durante o período de seca com caminhões pipa.  

Construção da planta de produção e beneficiamento de concentrado de lítio da Sigma Mineração – Foto: Divulgação / Sigma.

A Sigma Mineração divulgou que já investiu cerca de R$ 650 milhões do montante de R$ 1,2 bilhão na primeira fase do projeto, em Itinga, incluindo a terraplanagem que foi concluída, a fundação e compra de equipamentos. O restante do valor é destinado a finalização da compra e montagem dos equipamentos e abertura da mina para extração do minério. O complexo, denominado Grota do Cirilo, que está sendo implantado em duas fases nos municípios de Itinga e Araçuaí, deve produzir 440 mil toneladas de concentrado de lítio ao ano. A primeira etapa do funcionamento da mina deverá entrar em operação até o fim de 2022 e a segunda, em 2023.

Porém, segundo a Coordenadora Estadual do MAB na bacia do Vale do Jequitinhonha e Rio Pardo, Aline Aparecida Gomes Ruas Santos, a empresa não fez uma consulta prévia à população, e os projetos desenvolvem-se à revelia do interesse e conhecimento dos principais envolvidos, os moradores que vivem na área e dependem desses territórios para sua sobrevivência. Aline Ruas destacou que o posicionamento do MAB é de não liberar nem mesmo o estudo na Área de Preservação Ambiental (APA) na Chapada do Lagoão, em Araçuaí.

No entanto, uma resolução (N°105/04/2022) do governo de Minas Gerais, abre brechas para acelerar o licenciamento ambiental dos grandes empreendimentos da mineração, entre outros, no estado.  De acordo com Aline Ruas, do MAB, a medida fere princípios básicos definidos na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que assegura os direitos de povos e comunidades tradicionais, garantindo-lhes, dentre outros, o direito à consulta e à participação na tomada de decisões que possam trazer impactos ao seu modo de vida. A resolução viola o direito de participação de povos tradicionais no processo de tomada de decisão relacionada à atuação das empresas em seus territórios, ” afirmou Aline Ruas. Inclusive, Bolsonaro, com apoio da Bancada Ruralista, cogitou sair da convenção 169. A bancada ruralista, um dos pilares de sustentação do governo Jair Bolsonaro pressionou-o pela saída do Brasil da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). O tratado, vigente no Brasil desde 2004, é complementar à Constituição Federal de 1988 e define princípios para efetivação e proteção de direitos sociais, territoriais, à saúde, educação, trabalho e seguridade social de povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, comunidades tradicionais e extrativistas.

A minuta de exposições de motivos que originaram o Decreto nº 11.120/2022 do governo Bolsonaro, e que libera a exploração do lítio para empresas internacionais, documento que solicitamos junto à Lei de Acesso à Informação para produção dessa reportagem, nos foi disponibilizado com partes rasuradas, com o propósito de que seu conteúdo não se tornasse público. Na minuta, o ministro de Minas e Energia, Adolfo Sachsida, destaca que os investimentos “para mineração e industrialização do lítio no Brasil trarão oportunidade de desenvolvimento socioeconômico ao Vale do Jequitinhonha, com geração de empregos e renda para essa região carente de mão de obra qualificada, com relativo isolamento geográfico e com lacunas de infraestrutura”.

No entanto, isso é uma falácia, observou a coordenadora Estadual do MAB, Aline Gomes Ruas. No Vale do Jequitinhonha, a presença de companhias internacionais para exploração de lítio em áreas de vulnerabilidade social e pobreza, já é presente desde a década de 1960, e as concessões triplicaram nos últimos anos. A Companhia Brasileira de Lítio (CBL) já explora o minério na cidade de Araçuaí há cerca de 30 anos com a mina localizada na comunidade Piauí. No entanto, a CBL pouco ou nada contribuiu como um indutor de desenvolvimento e geração de riqueza na região.

Em relação à questão agrária frente à mineração, conforme pesquisa em andamento, vinculada ao Observatório dos Vales e do Semiárido Mineiro e do Laboratório de Estudos Tectônicos da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), coordenada pelos professores Aline Weber Sulzbacher e Matheus Kuchenbecker, além da estudante Izabella Aléxia Carneiro Santos e outros estudantes, cerca de 6 mil processos minerários foram registrados para a região do Vale do Jequitinhonha no período de 1935 a 2021. Destes, 188 indicam como substância o lítio com principal finalidade para uso industrial, sendo que 73% foram registrados de 2010 a 2021, o que demonstra o aumento dos pedidos para exploração do minério nas duas últimas décadas. Conforme dados da pesquisa mencionada, existem 188 processos relacionados ao lítio, no período de 1935 a 2021, distribuídos nas seguintes fases: 

 

Em Araçuaí, os moradores têm resistido aos avanços da Mineradora Sigma Lithium, e lutam pela garantia de seus direitos. De acordo Aline Ruas, o projeto de instalação da Sigma Mineração na Área de Influência Direta em Itinga, prevê a utilização de 42 mil litros de água por hora, que serão retirados do rio Jequitinhonha. Além de Itinga, as comunidades de Taquaral Seco, Ponte do Piauí, Poço Dantas e o Distrito de Taquaral de Minas, no raio de 1,5 km da área determinada do empreendimento serão as mais afetadas. Nessa área existem 27 propriedades onde vivem 73 moradores.

O Vale do Jequitinhonha não é pobre, foi empobrecido pelos projetos de “desenvolvimento” criados pelo Estado

Aline Gomes Ruas Santos do MAB e a professora Aline Weber Sulzbacher esclarecem a importância de se fazer um enfrentamento ao discurso do “Vale da miséria”. “O Vale do Jequitinhonha não é uma região pobre, essa região foi empobrecida pelos projetos chamados de “desenvolvimento” criados pelo Estado para “desenvolver” a região do Vale do Jequitinhonha, mas nunca trouxeram esse desenvolvimento que eles apontam, por que esses projetos são pensados de cima para baixo, sem levar em consideração as pessoas que vivem aqui. Os moradores da região têm propostas de desenvolvimento local, porém, nunca foram atendidos, ” afirma a coordenadora do MAB, Aline Ruas. Ela observou que esses projetos que prometem desenvolvimento e aumento de emprego e renda são pensados pelos governos e as grandes corporações, mas não envolvem o povo no processo.

Aline Weber Sulzbacher afirma que os discursos utilizados pelo Estado e empresas a respeito da pobreza do Vale têm o intuito de usar esses territórios como objeto de exploração, e isso é histórico, pois, sobretudo a partir do século XX, os projetos de desenvolvimento pensados para o Brasil tem como foco a infraestrutura. O estado de Minas Gerais sempre forneceu minerais para a lógica do capital, seja nacional e internacional. “Esse discurso da miséria permite que as grandes empresas se instalem aqui nas condições mais perversas, pois ele legitima a expropriação da natureza e a região se torna uma grande oportunidade de negócios, ” esclarece Aline Sulzbacher. O problema não é o lucro, esclarece a Dra. Aline, mas é preciso muita regulação e garantias de uma contribuição efetiva da exploração mineral para o desenvolvimento local com responsabilidade ambiental.

Estatizar a exploração do lítio não resolve o problema do Vale

“Estatizar a exploração do lítio não resolveria o problema”, observa a Dra. Aline Sulzbacher.  Ela aponta que é preciso construir outras relações, que não se pautem pela hegemonia do Estado, pois o Estado quando não é ator nesses processos, é capturado pelas grandes empresas e se torna conivente com situações que assolam os territórios. “É preciso organizar outros modelos de gestão, pautados numa lógica em que a exploração do lítio dialogue com as comunidades, e atenda uma demanda real das necessidades da sociedade, e não a demanda de superprodução para valorização do capital, ” aponta a professora Aline Sulzbacher.

Para Aline Gomes Ruas Santos, a exploração mineral dificilmente atenderia aos interesses das populações locais, mas sim das empresas que vislumbram na extração de recursos naturais – “commodities”- para atender às demandas do mercado internacional. “O objetivo desses projetos não é desenvolver a região, nunca foi, mas explorar os lucros dos minérios, como tem acontecido historicamente em Minas Gerais, e após retirá-los, ficam as crateras no solo, e o povo é abandonado novamente à própria sorte, sem recursos, e ainda mais empobrecido”, analisa Aline Ruas do MAB. Os moradores denunciam a miséria e o caminho de destruição deixado pelas mineradoras, como comprovam os crimes da Vale em Mariana em 2015 e Brumadinho em 2019.

Com o avanço da produção brasileira de lítio, estima-se um volume de investimentos superior a R$ 15 bilhões na região até 2030. “Mas esse dinheiro vai ficar nos nossos municípios? ”, questiona Aline Ruas.  A Sigma afirma que serão gerados mais de 7 mil empregos diretos durante a fase de instalação da mineradora, e cerca de 200 vagas de emprego para os trabalhadores do ramo da mineração durante a operação – número bastante limitado comparado ao total da população atingida. Além disso, os empregos de melhor qualificação serão destinados a pessoas que virão de outras regiões. Aline Ruas explica que após a finalização das obras haverá um grande excedente de trabalhadores desempregados na região, que não necessariamente irão voltar para suas cidades, e poderão aumentar o desemprego. A chegada de cerca de 7000 homens em cidades pequenas, cerca de 15 mil habitantes em Itinga e 20 mil em Araçuaí, sempre gera impactos sociais (abuso de álcool, violência, exploração sexual, gravidez de adolescentes, etc.) “Além disso, são empregos temporários, e muitas vagas de trabalho são preenchidas por pessoas de fora dos municípios, pois são empregos especializados. Por que ao invés da exploração do lítio, não se pensa, por exemplo, em como o povo ter acesso à água? ” Denuncia Aline Ruas do MAB.

De acordo com a professora Aline Sulzbacher, o ideal seria que as riquezas ficassem no local, com a canalização de lucros para as populações locais. A regulação e tributação deveria contribuir com a geração de recursos para dinamizar a economia regional.

Para Aline Ruas do MAB, é importante que se mude o foco do crescimento econômico baseado apenas na lucratividade das empresas, para o ser humano. Por fim, ela destaca que é preciso envolver as comunidades nesse processo de debate sobre a construção de renda das famílias, baseada na garantia dos seus direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais dos seres humanos.

Marci Hences é jornalista no Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração.

 

 

 

 

 

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