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Série de reportagem: Conflitos em territórios afetados pela mineração escancaram contradições da transição energética

À sombra da propaganda corporativa, comunidades próximas a reservas de minerais críticos convivem com risco de expulsão e contaminação do ar e da água

“Os impactos ambientais são assustadores”. O relato é da irmã Inês de Oliveira, integrante da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que acompanha há oito anos os danos causados pela produção de fosfato e nióbio pela mineradora chinesa CMOC em Catalão, no Sul de Goiás. Os mais de 110 mil habitantes do município são afetados pelo “cheiro de barata”, como foi apelidado o odor desagradável produzido pela mineração. “O cheiro é sentido principalmente nas periferias. Mas, dependendo do lado que o vento bate, se sente em toda a cidade”, afirma a religiosa.

A mais de mil quilômetros de Catalão, comunidades indígenas Pataxó e Pankararu no Vale do Jequitinhonha (MG), expulsas de suas terras ancestrais, vivem hoje à sombra da mineração de lítio. Além dos impactos ambientais, a presença de “estranhos” reacendeu, entre outras preocupações, o pesadelo da violência contra as mulheres. “Já não andamos mais com tranquilidade”, diz Cleunice Silva, do povo Pankararu. “Nossa qualidade de vida está diminuindo. Não temos mais paz”.

Nióbio e lítio são alguns dos minerais críticos que podem servir como matéria-prima para a fabricação de tecnologias consideradas essenciais para a transição energética – baterias com alta densidade de energia, carros elétricos, turbinas eólicas, etc. Contraditoriamente, sua exploração deixa rastros irrecuperáveis para os territórios.

Esta é a terceira e última matéria da série “A falsa promessa dos minérios de transição”. Clique para acessar a primeira e a segunda reportagens.

Do racismo ambiental às zonas de sacrifício

Os danos observados no Brasil e na América do Sul, provocados em grande medida por empresas transnacionais, não são uma casualidade. Em um famoso memorando de 1991, Lawrence Summers, então economista-chefe do Banco Mundial, já incentivava “a migração das indústrias mais poluentes ao Terceiro Mundo”. O argumento era que, em territórios com populações pobres e com menor expectativa de vida, os problemas de saúde não chamariam tanta atenção – ou implicariam em indenizações mais baratas. “É impecável”, dizia Summers. Em países vizinhos, já é comum o uso do termo “zonas de sacrifício” para se referir a territórios próximos a grandes reservas minerais.

Em 2022, o Mapa dos Conflitos da Mineração contabilizou 932 ocorrências de violência em 792 localidades do Brasil, que atingiram ao menos 688.573 pessoas. Houve aumento de 22,9% das localidades envolvidas em conflitos provocados pela mineração em comparação com o ano anterior, a maior parte relacionadas a disputas por terra (590) e por água (284). Os estados com mais conflitos foram Minas Gerais (37,5%), Pará (12%) e Amazonas (7,4%).

Das cerca de 2,6 mil ocorrências já mapeadas pelo Observatório dos Conflitos da Mineração, ao menos 100 envolvem minerais críticos para a transição energética. Elas incluem disputas fundiárias, impactos à saúde, contaminação e escassez de água.

Leia também: Mineradoras que receberam R$ 26 bilhões em renúncias fiscais em um ano foram responsáveis por 776 ocorrências de violência entre 2020 e 2022]

Água turva

Em Catalão, a promessa de um modelo de mineração “verde e de baixo carbono” contrasta com a poluição não apenas do ar, mas também da água. Os impactos atingem pequenos agricultores da comunidade Coqueiros, nas imediações da mina Boa Vista.

A mina tem quase 500 metros de profundidade. “Cavar um buraco como esse provoca uma inversão nos cursos d’água. A drenagem, que antes era ‘para fora’, passa a ser ‘para dentro’. Isso obviamente diminui a vazão, e as nascentes já não abastecem os cursos hídricos da região como antes”, explica Marcelo Mendonça, doutor em Geografia e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG) em Catalão.

A água no fundo desse grande buraco, relata Mendonça, é bombeada constantemente pela CMOC para retirar pirocloro – minério-base para a produção do nióbio –, inviabilizando seu uso para irrigação de cultivos. “A água que jorra para os cursos hídricos próximos fica turva, porque contém uma enormidade de sedimentos”, completa o professor.

Os danos foram reportados à Secretaria Nacional de Diálogos Sociais e Articulação de Políticas Públicas, que realizou em novembro de 2023 uma visita interministerial à região e acompanha o monitoramento da água e do ar para exigir que os responsáveis tomem providências. Em maio, o Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública realizaram uma audiência pública com objetivos semelhantes.

A CMOC adquiriu a mina Boa Vista da britânica Anglo American em 2016. Desde então, a produção e exportação de ferronióbio no local saltou de 9 mil para 14 mil toneladas. O ferronióbio é uma liga metálica com aproximadamente 2/3 de nióbio e 1/3 de ferro, que abastece a indústria siderúrgica e torna as chapas de aço mais resistentes e maleáveis. Essa liga é utilizada em pontes, gasodutos, oleodutos, automóveis e turbinas de avião.

A mina Boa Vista, da CMOC, só é menor que o complexo industrial da Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração (CBMM) em Araxá (MG), que também possui capital chinês – 15%, desde 2011. A família Moreira Salles, dona do banco Itaú, é acionista majoritária da empresa, com 70%.

O Brasil possui as maiores reservas conhecidas de nióbio, e 98% das reservas em operação estão em Catalão, Araxá e na Amazônia. “O aumento da capacidade de produção da mina Boa Vista provocou a ampliação de estradas e barragens de rejeitos, que agravam o processo de expropriação compulsória das comunidades”, ressalta Ricardo de Assis, professor de Geografia da Universidade Estadual de Goiás (UEG).

Transição energética = mais desmatamento?

Além do nióbio, Goiás possui reservas de níquel em operação pela Anglo American em Niquelândia e de cobre, pela sueco-canadense Lundin Mining em Alto Horizonte. Há ainda dois projetos avançados para exploração de terras raras no estado: o complexo da mineradora Serra Verde em Minaçu, e o Módulo Carina, da chilena Aclara, em Nova Roma.

“Todos são territórios com presença de posseiros, quilombolas, onde podem se acirrar conflitos à medida que os projetos avancem. E todos estão articulados com o discurso da necessidade da mineração para a transição energética”, enfatiza Assis.

Conforme artigo publicado em janeiro pelos pesquisadores Bruno Milanez e Aline da Silva Araújo, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), o Norte goiano, onde estão Minaçu e Niquelândia, integra um dos três principais eixos de interesse por minerais críticos no Brasil.

O primeiro inclui Norte e Nordeste de Minas Gerais, Oeste e Norte da Bahia e sudeste do Piauí. Os conflitos nessa faixa tendem a estar relacionados ao alto consumo de água por parte dos projetos de mineração. O segundo eixo abrangeria, além do Norte de Goiás, o Sul de Tocantins, área de Cerrado com taxas crescentes de desmatamento, onde estão as nascentes de grandes rios como Xingu, Tocantins e Araguaia. Por fim, o terceiro vetor se estenderia pelo Norte de Mato Grosso, Sudeste do Pará, Leste do Amazonas e Roraima.

Sobre este último eixo, os autores apontam um paradoxo: para expandir a mineração seria preciso desmatar milhões de hectares do bioma amazônico, o que intensificaria a emissão de gases de efeito estufa – contrariando a promessa da transição energética.

No coração da Amazônia se encontra, por exemplo, uma das maiores reservas de níquel do mundo. O projeto Onça Puma, da mineradora Vale, já provocou o deslocamento forçado de agricultores familiares e comunidades indígenas, escassez e poluição das águas, desmatamento e erosão do solo na região de Ourilândia do Norte (PA). Conforme o mais recente Relatório de Violência contra os Povos Indígenas do Brasil, o projeto contaminou o rio Cateté com metais pesados ao longo de sete anos, com consequências até hoje para as aldeias dos povos Xikrin e Kayapó.

As atividades do Onça Puma foram suspensas em abril deste ano pelo Tribunal de Justiça do Pará, por descumprimento de condicionantes ambientais.

Rios que secam

Em Minas Gerais, uma pequena aldeia situada à margem direita do Rio Jequitinhonha, em Araçuaí, é habitada por dois povos: Pataxó e Pankararu. Seus territórios ancestrais estão, respectivamente, na zona litorânea da Bahia e em Pernambuco. “A história de perda de território fez com que a gente se espalhasse pelo país”, lembra Cleunice Silva, do povo Pankararu. A indígena teme que o avanço dos projetos de pesquisa e extração do lítio, minério-chave para a produção de baterias, obrigue seu povo a se deslocar novamente.

O estado concentra a maior parte dos territórios atingidos pela exploração de lítio no Brasil. Além de comunidades indígenas e quilombolas de municípios como Araçuaí e Itinga, a operação das empresas Quartzo Brasil, Companhia Brasileira de Lítio (CBL) e da canadense Sigma Lithium também afetam terras indígenas Cinta Vermelha de Jundiba e Aranã.

No Baixo Vale do Jequitinhonha, conforme mapeado pelo Observatório dos Conflitos da Mineração, também há risco de expropriação de comunidades e de danos ambientais em decorrência do interesse da mineradora Nacional de Grafite em extrair grafita no Parque Estadual Alto Cariri. A exploração deste minério de transição poderia deixar o município de Salto do Divisa sem água.

Cleunice Silva diz que as comunidades que dependem das águas do Jequitinhonha e do Araçuaí já sentem que os rios “pedem socorro”. “Eles estão desaparecendo”, afirma a indígena Pankararu, enfatizando os danos causados por rejeitos da mineração. “Nós costumamos dizer que tudo que se transforma em produto [mercadoria] vira lixo. E estamos vendo isso acontecer nos nossos territórios”.

Fissuras também no Nordeste


Há pouco mais de dois anos, o Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) recebeu as primeiras denúncias relacionadas a impactos do beneficiamento de cobre em uma mina a céu aberto em Craíbas, município de 25 mil habitantes no agreste de Alagoas. O projeto Serrote da Laje, epicentro do conflito, pertence à mineradora Vale Verde. O principal destino do minério é a China, e a previsão de vida útil da mina é de 14 anos.

O incômodo das comunidades locais começou com o barulho e a poeira gerados pela detonação de explosivos e pelo fluxo de caminhões. Desde 2020, porém, moradores de seis delas passaram a atribuir à mineradora rachaduras nas casas, tremores de terras, doenças relacionadas à poluição e à perturbação sonora e até mortes de fetos de bezerros.

Conforme estudo produzido pela Defesa Civil em fevereiro de 2024, de 362 residências analisadas no entorno da mina, 193 (53,3%) apresentavam problemas estruturais, 58 delas com rachaduras maiores que 3 mm. Impactos relacionados a ruídos foram constatados em 88,4% das residências; tremores de terras em 87%;  doenças em 23,7%; e morbidade animal em 83,4% das residências – considerando apenas aquelas onde havia criação de animais.

A realização do estudo foi determinada pela Justiça Federal no âmbito de ação movida pela Defensoria Pública da União (DPU), a partir de reclamações de moradores do entorno do projeto Serrote da Laje.

A exemplo dos conflitos envolvendo o nióbio em Goiás, o desafio é comprovar na Justiça o nexo causal entre os danos constatados e a mineração. Para o agricultor Florisval Costa, que conheceu Craíbas antes da mineração, não restam dúvidas. Aos 70 anos, ele mora a 4 km da mina, na comunidade Santa Rosa, e diz que ouve explosões, em média, duas vezes por semana. “O barulho é muito forte. Tem gente que não consegue dormir direito. A gente se assusta, às vezes sente tremores. Tem uma poeira danada também”, relata.

Antes da chegada da Vale Verde, a economia de Craíbas baseava-se na agricultura familiar, com a produção de fumo e de alimentos. “Hoje, já são mais de 100 famílias que saíram, venderam as terras, desertaram para outros municípios, para as periferias. Várias comunidades não existem mais, outras perderam mais da metade [dos territórios] para a mineradora. Muita história ficou para trás”, lamenta Florisval.

Rikartiany Cardoso, advogada e militante do MAM, critica a falta de debate sobre os possíveis impactos do empreendimento. “Fizeram uma audiência com transmissão online, mas a portas fechadas, sem participação da comunidade. Não houve possibilidade de elaboração coletiva ou de apresentação de um contraditório técnico justo”, relata. “A mineração, como sempre, trouxe a promessa de desenvolvimento econômico, mas na verdade destruiu fontes de renda e de diversificação econômica”.

Conflitos se intensificam na Bahia


O grupo de pesquisa Geografia dos Assentamentos Rurais (GeografAR), da Universidade Federal da Bahia (UFBA), investiga conflitos decorrentes da não demarcação de terras tradicionais indígenas e quilombolas na Bahia. Em quase 30 anos de atuação, mapeou 3 mil pontos de conflito no estado, que já é o segundo com mais requerimentos ativos de autorização de pesquisa mineral (23.019) – atrás apenas de Minas Gerais (33.800).

Segundo o Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), mais de 200 municípios baianos sediam projetos minerários, com um faturamento acumulado de R$ 9,7 bilhões em 2023. Esta relevância levou o estado a ser o escolhido para sediar a edição 2025 do evento Expo & Congresso Brasileiro de Mineração, em Salvador.

“Em 2013, identificamos 28 pontos de conflito; hoje já temos 90 municípios com algum tipo de conflito por mineração em alguma comunidade, seja assentamento, quilombolas, indígenas ou fundo e fecho de pasto”, enumera o geógrafo Lucas Zenha Antonino, integrante do GeografAR, pontuando que a maioria dos processos está em fase de concessão de lavra.

O pesquisador chama atenção para o interesse crescente por minérios de terras raras, especialmente a partir de 2015. Hoje, dos 22 mil processos ativos em fase de requerimento de pesquisa na Bahia, 858 estão relacionados ao grupo de terras raras – 18 elementos químicos de difícil extração usados para produção de catalisadores, supercondutores, baterias, fibras ópticas, entre outros. Embora os danos ambientais ainda não sejam perceptíveis, a falta de transparência das empresas já preocupa as comunidades.

“A pessoa que mora ali tem o direito de saber qual é a empresa, qual mineral está pesquisando, por quanto tempo, que tipos de projetos vão chegar ali”, analisa Antonini. “Já na fase de pesquisa, a gente vê ocorrer aberturas de estradas e trincheiras, que os geólogos fazem para tirar alguma amostra do solo, sem autorização; supressão de vegetação de forma irregular”, lembra. Os requerimentos de pesquisa referentes a outros minérios críticos, como grafita, lítio, cobalto, níquel e cobre, são mais de um terço do total registrado pela Agência Nacional de Mineração (ANM) na Bahia.

Só o município de Jequié, no Centro-Sul da Bahia, é alvo de 290 requerimentos ativos de autorização de pesquisas, relacionados a diferentes minérios. Quase metade, 111, são referentes a terras raras.

Também no Centro-Sul Baiano, há operações em andamento para extração de urânio e grafita. A produção de urânio no município de Caetité foi retomada em 2020 pela estatal Indústrias Nucleares do Brasil (INB) após cinco anos de inatividade, e está historicamente associada a denúncias de grilagem de terras, vazamentos de material radioativo, contaminação de lençóis freáticos e adoecimento da população – incluindo comunidades quilombolas. O Brasil tem a sexta maior reserva do mundo, e o mineral extraído do sertão baiano abastece usinas nucleares em Angra dos Reis (RJ). A INB também está em fase final de instalação da maior mina de urânio do país, entre os municípios cearenses de Santa Quitéria e Itatira, a 210 km de Fortaleza, em parceria com a empresa privada Galvani Fertilizantes. A estimativa é produzir anualmente 2,3 mil toneladas de concentrado de urânio, além de fertilizantes fosfatados.

Já no caso da grafita, a principal empresa é a Grafite do Brasil, que produz 4,5 mil toneladas por mês. Na zona rural do município de Mainquique, uma das barragens de rejeitos da empresa foi interditada por risco iminente de rompimento em abril de 2019 – em meio aos ecos da destruição em Brumadinho (MG), que matou 270 pessoas em janeiro daquele ano. Em 2022, a barragem voltou a ser embargada pela ANM, após constatar trincas e erosões generalizadas. O risco de rompimento é até hoje considerado alto.

A grafita é usada na produção de baterias de íon-lítio para carros elétricos, permitindo armazenamento em larga escala da energia gerada por fontes renováveis. O Banco Mundial estima um crescimento de 383% na demanda por esse minério até 2050. O Brasil possui a segunda maior reserva do mundo e é atualmente o terceiro maior fornecedor global.

“Mundo sustentável”?


Também impulsionada pela transição energética, a demanda global por alumínio deve crescer em torno de 29% até 2030. Cerca de 70% desse aumento estará relacionado à execução de projetos solares. Em momentos de alta do preço do cobre, o alumínio é ainda uma alternativa para fabricação de cabos e aplicações elétricas em geral.

O Brasil é o quarto maior produtor de bauxita, matéria-prima do alumínio metálico, e o Pará concentra 3/4 das reservas nacionais. A empresa que lidera a produção de bauxita no país é a Mineração Rio do Norte (MRN), com sede em Oriximiná (PA). As operações, à margem do rio Trombetas, começaram em 1979.

Por dez anos, os rejeitos da lavagem da bauxita foram despejados pela empresa no Lago do Batata, antigo local de banho e pesca de quilombolas. O total de rejeitos no fundo do lago é estimado em 24 milhões de toneladas. A partir de 1989, a lavagem da bauxita passou a ser feita dentro da mina da MRN, mas o ecossistema já estava deteriorado.

A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante o direito das comunidades tradicionais a consulta prévia, livre e informada sobre empreendimentos que afetem seus territórios, só foi ratificada pelo Brasil em 2002.

A MRN também provocou mudanças na cobertura do solo, em uma área de aproximadamente 10,8 mil hectares, para extração mineral e instalação de barragens de rejeito dentro da atual Floresta Nacional de Saracá-Taquera – território antes habitado por quilombolas e ribeirinhos.

A comunidade mais próxima do empreendimento  é a Boa Vista, maior  quilombo de Oriximiná, com 420 famílias, a sete minutos de rabeta [canoa a motor] do projeto da MRN.

“Nos últimos dois anos, fizemos um levantamento, com acompanhamento de antropólogos e historiadores, e identificamos 53 impactos que têm nexo causal com o Projeto Trombetas [da MRN]”, relata Marivaldo de Jesus Rocha, um dos coordenadores da Associação da Comunidade Remanescente de Quilombo Boa Vista (ACRQBV). Além da contaminação das águas, o estudo menciona, por exemplo, barulho de trens para escoamento de produção, afugentamento de animais, poeira e manobra de navios de grande porte no rio Trombetas.

“Diariamente tem manobra de navio em frente à comunidade, e isso impossibilita a pesca. Muitos deixaram de comer peixe e criaram o hábito de comer frango”, relata o líder quilombola. “O Lago do Ajudante, em frente ao projeto da MRN, também era uma área de pesca, caça, colheita de castanhas. Hoje está cheio de gente de fora, o que provoca um aculturamento e impacta nos modos de vida. E a gente sabe que, se não fosse a MRN e a bauxita, não teria essa invasão territorial”, acrescenta.

Em maio deste ano, um estudo do Instituto Socioambiental (ISA) em parceria com a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) revelou que 781 mil hectares de territórios quilombolas são pressionados por 1.385 requerimentos minerários no Brasil. A região sob maior pressão é o Centro-Oeste, onde 35% da área quilombola é impactada por requerimentos de pesquisa e extração mineral.

Em seu site oficial, a MRN afirma que sua missão é “produzir bauxita que contribua para o mundo sustentável”. Em 2023, 45% das ações da empresa foram adquiridas pela gigante suíça Glencore por US$ 775 milhões – quase R$ 3,9 bilhões. O restante das ações é controlado pelas australianas South 32 (33%) e Rio Tinto (22%).

Segundo a Associação Brasileira do Alumínio (Abal), a indústria de alumínio instalada no país planeja investir R$ 30 bilhões até 2025 – o que inclui investimentos da MRN em cinco operações de mineração de bauxita no Pará, em fase final de licenciamento.

Marivaldo de Jesus Rocha chama atenção para o contraste entre a riqueza gerada pelo minério e a precariedade das condições de vida no quilombo. “Em novembro vai fazer 29 anos de titulação da nossa terra, e ainda não tem uma escola boa, posto de saúde”, diz.

“A empresa até tem projetos sociais, ajuda a trazer água, oferece bolsas de estudo, transporte de estudantes. O que a gente reivindica é que esses programas sejam uma condicionante para as operações, e que sejam adequados às nossas necessidades e à nossa forma de viver – não uma imposição da empresa”, acrescenta o líder quilombola. A comunidade também demanda, junto ao MPF, ações visando mitigar e compensar os impactos da mineração.

Silenciamento e pressão


O aumento da demanda por matérias-primas para a transição energética reforça a promessa – historicamente associada à mineração – de desenvolvimento econômico e geração de riquezas para as comunidades. Conforme descrito na primeira reportagem, questionamentos à lógica corporativa são frequentemente enquadrados como “negacionismo climático” ou “negacionismo econômico”.

Nem sempre os moradores das regiões afetadas se sentem à vontade para criticar os impactos das mineradoras. Essa dificuldade veio à tona durante a apuração desta série. Parte dos moradores preferiram não se identificar ou optaram por não conceder entrevista, alegando receio de serem processados, repreendidos ou causarem prejuízo a familiares que trabalham nas mineradoras.

“Eles conseguem cooptar as lideranças do entorno”, lamenta o agricultor Florisval Costa, de Craíbas. “Todo mês fazem uma reunião para algumas pessoas levarem as insatisfações da comunidade. Aí, elas voltam dizendo que a mineradora é boa, gera emprego, aumenta a renda do município. Se alguém faz qualquer questionamento, eles dizem que é mentira, saem em defesa da empresa”, relata.

Uma grande manifestação contra os impactos da Vale Verde ocorreu em fevereiro de 2022, quando moradores bloquearam a rodovia AL-486 como forma de protesto. Desde então, ganhou força entre os moradores o entendimento de que o melhor a fazer é aguardar a conclusão dos processos na Justiça – ou, ainda, de que os benefícios trazidos pela mineração são maiores que os prejuízos. “Na época do Natal, Semana Santa, a empresa dá uma cesta básica, e as pessoas vão se contentando com isso”, completa Florisval.

No caso mencionado na abertura desta matéria, envolvendo a exploração de nióbio em Goiás, a CMOC processou manifestantes identificados em um protesto na rodovia GO-504, há cerca de um ano. Na ocasião, além de denunciar os danos da mineração nos municípios de Catalão e Ouvidor, pequenos agricultores pediam uma indenização justa por suas terras.

Catalão e Ouvidor são municípios vizinhos com mais de 50 anos de megamineração a céu aberto, que resultaram na expropriação compulsória de dezenas de famílias camponesas. “Muitos se tornaram operários da indústria extrativa mineral. Foi uma ruptura metabólica desses sujeitos com a terra”, define o professor Ricardo de Assis.

Em alguns casos, a desocupação das terras se deu por meio de decisões judiciais, baseadas em um documento do Departamento Nacional de Produção Mineral de 1967, que mapeou áreas a serem liberadas para exploração dos minérios – muito antes da popularização do termo transição energética.

“A empresa cria disputas internas, oferecendo valores diferentes para irmãos, herdeiros”, relata Marcelo Mendonça, que foi secretário municipal de Meio Ambiente de Catalão entre 2014 e 2016. Ele lembra que, assim que comprou a mina Boa Vista da Anglo American, a CMOC retirou-se do grupo de trabalho que reunia mineradoras, associações de moradores, movimentos sociais e sindicatos para debater e tentar mitigar os impactos da mineração.

Ricardo de Assis analisa que, em paralelo à judicialização das terras, “a estratégia da CMOC envolve hoje um discurso de responsabilidade social corporativa, com mecanismos de convencimento da sua importância econômica e social junto às comunidades afetadas”. A materialização desse discurso se dá, segundo o professor, por meio da “execução de projetos sociais, culturais e ambientais, calcados no discurso de geração de renda, assistência em saúde e doações, para legitimar sua atuação nos territórios”.

Gestão de riscos sociais


Em quase todos os conflitos analisados nesta reportagem, as mineradoras investem em programas em áreas como saúde, educação ambiental, formação musical, e até mesmo em projetos visando à preservação de elementos identitários das comunidades. Essas táticas, cada vez mais sofisticadas, ajudam a aplacar as resistências, neutralizar críticas e garantir apoio a seus empreendimentos através do lobby empresarial.

No caso dos minérios críticos, a promessa de redução das emissões de gases de efeito estufa fortalece o discurso de legitimação da atividade minerária junto a autoridades públicas, à sociedade civil e aos investidores privados. É o que observa a economista e vice-presidenta do Instituto de Políticas Alternativas do Cone Sul (Pacs) Sandra Quintela, chamando atenção para o abismo entre a narrativa das mineradoras e os impactos observados nos territórios.

Conforme descrito ao longo desta série, a necessidade de viabilizar a transição energética é um atributo que agrega valor aos projetos de pesquisa e extração mineral. Os riscos às comunidades, por outro lado, ficam de fora dos relatórios de sustentabilidade e das prestações de contas aos acionistas. “Existe um pacto entre as empresas e os investidores: você finge que faz e eu finjo que acredito, e os dois lados ganham – quem compra e quem vende as ações”, ressalta Quintela, integrante da coordenação da Rede Jubileu Sul Brasil.

É o caso do hidrogênio verde: embora considerado uma alternativa aos combustíveis fósseis, seu transporte impõe uma série de dilemas. “Para construir gasodutos, é preciso mais mineração. Para produzir navios, também. E o diesel, que é combustível dos navios, vem do petróleo”, lembra. Cabe acrescentar que, segundo a Agência Internacional de Energia (AIE), o próprio processo de eletrólise da água, necessário para obtenção do hidrogênio verde, demanda em grande quantidade minerais do grupo platina e níquel e, em quantidade moderada, terras raras e alumínio.

Além da roupagem sustentável, são cada vez mais comuns as práticas de “gestão de riscos sociais”. Foi o que constataram os pesquisadores Albino José Eusébio e Sônia Barbosa Magalhães, doutores em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Pará (UFPA), em trabalho de campo realizado ao final de 2020 na região do projeto Onça Puma, no Pará.

Métodos de coerção, historicamente associados ao projeto, foram substituídos por práticas e discursos alinhados a uma perspectiva de responsabilidade social corporativa, que pressupõe o engajamento da população local. O objetivo, conforme os pesquisadores, é “que as comunidades se identifiquem positivamente com o empreendimento, promovendo, deste modo, a estabilidade e a garantia da produção”.

Estratégias semelhantes foram observadas pelo Observatório dos Vales e do Semiárido Mineiro. O grupo realizou uma análise de discurso da mineradora Sigma Lithium em suas redes sociais. A empresa, de capital canadense, lidera a exploração de lítio no estado.

“Em uma linguagem coloquial, a Sigma enfatiza em quase todas as publicações a prosperidade para o Vale do Jequitinhonha”, afirma Letícia Honorato de Oliveira, pesquisadora do Observatório. Outra estratégia, segundo a pesquisadora, é enfatizar as diferenças dos métodos usados pela Sigma em relação a outras mineradoras que operam no estado, seja pelo tipo de barragem ou pelos produtos químicos utilizados.

Em paralelo, empresas que exploram minérios de transição buscam publicizar ações que denotem preocupação com o planeta e com os territórios. No caso da Sigma, um dos exemplos é o programa Donas de Mim, que oferece uma linha de crédito para mulheres empreendedoras da região e financia reformas em escolas em parceria com as prefeituras de Itinga e Araçuaí. Oliveira observa que programas como esse não garantem uma “geração de emprego compatível à vastidão de terras” impactadas nem são capazes de “amortecer as dívidas ecológicas e sociais” da mineração.

Outro lado

A mineradora Vale Verde informou à reportagem que até o momento não há comprovação técnica de nexo causal entre a atividade minerária e as rachaduras de imóveis em Craíbas. O mesmo foi alegado em relação às mortes de animais – objeto de consultoria externa realizada por um médico veterinário em uma propriedade próxima à mina, em 2021.

“No processo de desmonte controlado de rochas, utilizamos avançada tecnologia eletrônica e uma emulsão bombeada como agente detonante — minimizando todo o impacto do processo. Toda a operação semanal de desmonte (2x/semana) é acompanhada por uma equipe multidisciplinar (…) antes e após o processo, o qual segue os mais rigorosos padrões de segurança”, diz a nota enviada pela assessoria da empresa. A atividade, ainda segundo a mineradora, conta “com as devidas concessões e controles estabelecidos dentro da legislação brasileira e internacional”.

Sobre a poeira gerada pela detonação de explosivos em Craíbas, a Vale Verde informou que “realiza monitoramento ambiental contínuo, a fim de garantir a consonância com o que vigora na legislação”. “Há também monitoramento de qualidade do ar ao redor da mina, por meio do qual amostras de particulados são enviadas para laboratórios de empresas terceirizadas para as devidas análises químicas, estando todos os resultados apresentados em conformidade com a legislação”, acrescenta a nota enviada pela mineradora.

Também em relação ao ruído, a mineradora afirma atender “aos padrões exigidos pela legislação brasileira, conforme demonstrado pelas medições periódicas realizadas”, acrescentando que “implementou ajustes operacionais em suas atividades noturnas, substituindo sinais sonoros de ré por sinais luminosos e operação de equipamentos somente em áreas internas da mina”.

Em relação às doenças relatadas por moradores, a empresa afirma que contratou uma consultoria externa para a elaboração de um estudo detalhado de saúde na região, que será compartilhado em breve com a Prefeitura de Craíbas.

De acordo com a Vale Verde, os documentos que autorizam a operação da mina Serrote estão disponíveis nos órgãos fiscalizadores de jurisdição nacional e local, “tendo a Licença de Operação (LO) sido emitida pelo Instituto de Meio Ambiente de Alagoas (IMA/AL) em 2021, momento em que foram iniciadas as atividades operacionais na Mina Serrote”.

Por fim, em relação à falta de debate sobre os possíveis impactos do empreendimento, a mineradora disse que não foi responsável pela audiência pública mencionada na matéria – mas apenas “convocada para prestar esclarecimentos, diante de um depósito de estéril que sofreu erosão”. “A audiência durou mais de 4h, com os gestores da Mina Serrote respondendo a todas as perguntas dos vereadores e do público presente, agindo de forma transparente e ética”, afirma a Vale Verde.

A mineradora mencionou ainda seu programa de visitas, que permite que pesquisadores, líderes comunitários, imprensa e autoridades conheçam de perto os processos operacionais; o Comitê Social Participativo de Mineração (CSPM), com participação de integrantes do poder público municipal, de moradores das comunidades e da própria mineradora; e seus canais de comunicação com os moradores (Fale Conosco: 0800 000 1994 e WhatsApp: 82 98189-6016).

A Vale Metais Básicos afirma que cumpre as condicionantes e os controles socioambientais das suas atividades no Pará, “conforme determina a legislação e em respeito às comunidades vizinhas”. Sobre o projeto de níquel Onça Puma, a empresa acrescenta que concedeu férias coletivas de 30 dias aos 108 empregados da mina de mesmo nome enquanto busca reverter a suspensão da operação do empreendimento pela Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas).

A reportagem tentou contato com as demais empresas citadas, mas não houve retorno até a publicação da matéria.

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Fernanda Paixão é jornalista internacional com foco na América Latina e direitos humanos.

Também é tradutora de espanhol/português do Instituto Internacional de Planejamento Educacional para a América Latina e o Caribe da Unesco. Durante três anos, foi correspondente da Argentina para o portal de notícias Brasil de Fato.

Daniel Giovanaz é repórter e produz matérias especiais para o Comitê Nacional em Defesa dos Territórios frente à Mineração.

Jornalista e mestre em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Trabalhou por cinco anos no portal Brasil de Fato, como repórter, editor e correspondente internacional. Autor dos livros “O oligopólio da RBS” (Insular, 2017) e “Dossiê Lava Jato: um ano de cobertura crítica” (Outras Expressões, 2018).

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