“Ambição e imaturidade”

Um kit para garimpo, como o usado por Bolsonaro, é vendido por R$ 310 no Mercado Livre. Se tiver sorte e achar três gramas de ouro, o equivalente ao peso de uma moeda de um centavo, já se paga o kit e ainda sobram R$ 134. A cotação do ouro em 1° de novembro estava em R$ 148 o grama.

A atividade garimpeira é tida por muita gente como promessa de dinheiro fácil e rápido. A ambição de enriquecer rapidamente e ter poder chegou a constar na ficha de Bolsonaro no Exército Militar. Em 1983, ele resolveu passar as férias em Saúde, na Bahia, para garimpar. Estava com outros cinco militares, sendo que dois “estavam sob seu comando”.

A situação foi registrada na avaliação feita pelos superiores na época. Segundo as anotações, eles atestaram que Bolsonaro tinha grande “ambição e imaturidade”, e que se percebeu “pela primeira vez sua grande aspiração em poder desfrutar das comodidades que uma fortuna pudesse proporcionar”. Na época, Bolsonaro respondeu aos superiores que não teve lucro.

Ligação antiga

Em 1986, o então deputado federal Sebastião Rodrigues de Moura, o Major Curió, do PMDB, enviou uma carta cheia de elogios a Bolsonaro. Dizia que desejava “passar o bastão” ao capitão, que na época tinha 31 anos. Curió era o interventor da região de Serra Pelada. A cidade que abriga a mina, de 18 mil habitantes, foi batizada de Curionópolis em sua homenagem. Ele comandou o massacre da guerrilha do Araguaia, no Sul do Pará, entre 1972 e 74, em que pelo menos 52 pessoasmorreram. Bolsonaro e Curió se conheceram em Serra Pelada, segundo o próprio Bolsonaro.

Na carta, que faz parte dos registros do Arquivo Nacional, em Brasília e pode ser lida na íntegra aqui, Curió afirma que reconheceu em Bolsonaro um parceiro na luta contra a “maior das ditaduras, o comunismo”. “Competirá a você, meu jovem companheiro, carregar este bastão, levando-o à vitória, com a graça de Deus e a ajuda dos homens de bem desta Nação”, diz o texto.

Na época, Bolsonaro ainda era um desconhecido. Sua única ação de projeção nacional havia sido escrever um artigo na revista Veja reclamando do salário baixo dos militares. Acabou sendo preso pela crítica, acusado de “transgressão grave”. Poucos meses depois, a mesma Veja revelaria que ele planejava explodir bombas em quartéis para pressionar o comando – o que ele sempre negou.

Major Curió é hoje coronel da reserva. Aos 83 anos, vive em Brasília praticamente isolado, tem problemas de saúde e quase não se comunica mais com a população de Curionópolis.

Ex-agente do Serviço Nacional de Informações, o SNI, Curió tinha prestígio junto à ditadura militar por causa do “bom serviço” prestado na guerrilha do Araguaia. Por isso, foi o indicado para administrar Serra Pelada quando o local teve um boom demográfico durante o apogeu do garimpo. Como uma espécie de interventor da comunidade, ele definiu regras rígidas, como a proibição de bebidas alcóolicas e de mulheres na região do garimpo. Costumava dizer que “o seu revólver soava mais alto”.

‘Cantamos não a canção da infantaria, mas o Hino Nacional. E as vozes daqueles homens mal barbeados e sujos pela lama avermelhada da maior mina de ouro do planeta, ecoaram pela selva amazônica.’

A mão de ferro garantiu ordem e estabilidade. Em 1980, o presidente João Batista Figueiredo visitou o local. O Jornal Nacional da época noticiou que uma multidão de garimpeiros recebeu Figueiredo cantando o hino nacional diante da bandeira do Brasil.

O momento é narrado por Curió na carta a Bolsonaro: “Vibrantes, patriotas, dignos e honrados, cantamos não a canção da infantaria, mas o Hino Nacional Brasileiro. E as vozes daqueles homens mal barbeados e sujos pela lama avermelhada da maior mina de ouro do planeta, ecoaram pela selva amazônica, impressionando o mundo”.

Em 2000, Curió foi eleito prefeito de Curionópolis. Em 2008, teve o mandato cassado por compra de votos e abuso de poder econômico. Ainda assim, os moradores lembram com saudade do cacique político. “Naquela época não tinha bagunça como tem hoje”, disse Marques, que ainda mora na localidade.

Hoje, os ex-garimpeiros que permanecem na região se dedicam principalmente à lavoura, à criação de peixes e abelhas. “Não sobrou nada de todo o dinheiro que fizemos naquela época. A gente pensava ‘vou gastar tudo hoje, que amanhã tem mais’. Mas uma hora acabou”, conta o diretor da cooperativa.

Depois do garimpo, Bolsonaro e Curió voltaram a se cruzar em Brasília. Curió foi deputado federal até 1987 e continuou residindo na capital federal durante a década de 1990. Bolsonaro foi eleito pela primeira vez para a Câmara em 1989. Eles não se cruzaram nos corredores da Câmara, mas em momentos de lazer. Partilhavam, pois, dos mesmo ideais.

Foi Curió o autor da frase “quem procura osso é cachorro”. Ele tentava desqualificar a tentativa de encontrar os corpos de mortos da guerrilha do Araguaia. A frase de Curió estampou um cartaz que Bolsonaro pendurou na porta de seu gabinete como tentativa de afrontar os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, que buscava recuperar a história do Araguaia.

Na época, alguns deputados disseram que o hoje presidente eleito estava tentando aparecer na mídia. “Seria uma omissão tratar o caso apenas como desequilíbrio mental. Até os desequilibrados mentais têm limite”, disse a então deputada Jô Moraes (PCdoB) ao Estado de São Paulo. De qualquer maneira, a busca pelos desaparecidos não tinha muito como prosperar: os militares desenterraram os corpos, arrancaram os dedos e os dentes e jogaram tudo em rios para não serem identificados.

Fonte: Matéria de Amanda Audi para The  Intercept Brasil