X

Santa Quitéria, no Ceará, luta para conter o desastre ambiental com exploração da maior jazida de urânio do país

Conselho dos Direitos Humanos recomendou na semana passada a suspensão do licenciamento ambiental por irregularidades. Especialistas apontam riscos de contaminação radioativa e escassez hídrica

 

Em 2019, quando iniciou seu governo, Jair Bolsonaro anunciou o projeto de construção de seis usinas nucleares até 2050, incluindo a ativação de Angra III. O problema é que, para colocar em prática o projeto de construção das usinas nucleares, é preciso recursos financeiros – o projeto custará 30 bilhões de reais – e minerais, como urânio para abastecer as usinas. E de onde sairão tais recursos?

Em 2020, enquanto o Brasil enfrentava um dos piores momentos de sua história, alcançando picos de mais de 2000 mortes por dia em decorrência da pandemia de covid – 19,  o governo, aproveitando-se que as atenções estavam voltadas para a pandemia, retomou um projeto iniciado na década de 1970 para explorar o território onde está situada a maior jazida de Urânio do Brasil, e uma das maiores do mundo – o Projeto Santa Quitéria. O empreendimento é um consórcio da empresa pública Indústrias Nucleares do Brasil (INB) e da empresa privada Fosnor – Galvani S.A (Fosfatados do Norte-Nordeste S.A), detentora da marca Galvani Fertilizantes e está localizado entre os municípios de Santa Quitéria e Itatira, a 217 km de Fortaleza, no sertão do Ceará.

Movimentos sociais, indígenas e pesquisadores de universidades da região apontam diversas irregularidades no projeto Santa Quitéria, além da ameaça de contaminação radioativa do ar e água e risco de escassez hídrica. Com o objetivo de barrar o desastre ambiental e os riscos iminentes à população que o projeto representa, as comunidades locais já apresentaram diversos estudos nesse sentido, e agora estão trabalhando para que o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) reconheça ilegalidades de procedimentos do processo e a inviabilidade hídrica.  O professor Emerson Ferreira de Almeida da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA) informou que diversas ações têm sido feitas para impedir a exploração de urânio no local, e questionamentos sobre a legalidade destes procedimentos junto ao Ministério Público Federal. Há alguns anos, a comunidade vem realizando passeatas, manifestações, conscientização sobre os riscos por meio das redes sociais, e alguns integrantes já estiveram em Brasília pressionando parlamentares para que se posicionem contra o projeto.

A mina do projeto Santa Quitéria é a céu aberto – o que contribui ainda mais para que partículas radioativas e minérios pesados liberados no processo de mineração se espalhem na região pelo vento. A estatal INB (Indústrias Nucleares do Brasil) não realizou o procedimento de consulta e consentimento prévio às comunidades atingidas, norma prevista em determinação da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. O estudo de impacto ambiental apresentado pelo Consórcio das empresas também contém irregularidades gravíssimas, como o licenciamento ambiental e o licenciamento nuclear que estão sendo realizados por esferas distintas, quando a lei dispõe que, para a concessão de licença prévia, é imprescindível a análise integrada dos impactos ambientais, sociais e radioativos. As informações referentes à utilização de água, além de informações relativas à radioatividade, não foram inseridas no Estudo de Impactos Ambientais (EIA) e no Relatório de Impactos ao Meio Ambiente (Rima) apresentado pelas empresas que pretendem explorar a área.

Em função disso, no dia, 2 de junho, o Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) enviou ofício ao Ibama recomendando-o para que suspenda o licenciamento ambiental do Projeto Santa Quitéria enquanto não for garantido o direito de consulta prévia aos povos indígenas e às comunidades tradicionais, que incluem quilombolas, pescadoras/es artesanais, povos de terreiro, entre outros. (Veja aqui o ofício). 

No ofício enviado ao Ibama, o Conselho dos Direitos Humanos destaca que o procedimento de consulta e consentimento prévio a estas populações está previsto em determinação da Convenção nº 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário. O Conselho recomendou ao Ibama que integre os estudos referentes a todo o empreendimento, incluindo ao processo, as informações sobre o licenciamento ambiental e o licenciamento nuclear, tendo em vista que, para a concessão de licença prévia, é imprescindível a análise integrada dos impactos ambientais, sociais, radioativos, entre outros, em todas as esferas da intervenção prevista.  O ofício também foi destinado ao Ministério Público Estadual do Ceará e ao Ministério Público Federal, para que recebam a denúncia e apoiem iniciativas do Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar, vinculado à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará para que exijam a suspensão do procedimento de licenciamento.

O documento declara que a Resolução nº 230, de 8 de junho de 2021, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), mais que disciplinar a atuação do Ministério Público junto aos povos e comunidades tradicionais, a norma possui como diretriz fundamental a “garantia do direito à consulta prévia aos povos interessados nos casos específicos em que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas” que os afetem diretamente. Além disso, aponta que a ausência de consulta prévia aos povos e comunidades tradicionais, justifica a nulidade de processos, cabendo ao Ministério Público zelar pelo cumprimento dessas ações, por meio do respeito aos protocolos de consulta elaborados pelos grupos e pela cobrança de sua aplicação junto ao Poder Público.

O documento observa ainda que essas normas devem ser respeitadas, considerando que na área de influência do Projeto Santa Quitéria (PSQ) existem escolas indígenas que podem ser verificadas através de mapeamento disponibilizado pela Fundação Nacional do Índio no Ceará; além de registros de atividades de saneamento básico realizadas pela Fundação Nacional de Saúde direcionadas às comunidades tradicionais na mesma região.

Esta é a terceira tentativa de licenciamento do projeto. Na primeira, em 2007, no pedido de autorização constava apenas a exploração do fosfato e foi encaminhado ao órgão ambiental estadual. O Ministério Público suspendeu o pedido em 2010, ao entender que a área continha urânio, logo, a competência era da esfera federal. Em nova tentativa, em 2010, o governo protocolou a autorização no Ibama e na CNEN  (Comissão Nacional de Energia Nuclear). O processo passou por audiências públicas em 2014 e teve a licença negada novamente em 2019 pelo órgão ambiental. Em 2020, o projeto foi retomado, e no final de 2021, o Consórcio das empresas apresentou um novo Estudo de Impactos Ambientais e Relatório de Impactos ao Meio Ambiente. Esse pedido é o mais recente, e, como mencionado, o Conselho Nacional dos Direitos Humanos enviou ofício ao Ibama na semana passada (02/06) recomendando-o para que suspenda o licenciamento ambiental do Projeto Santa Quitéria.

Radioatividade

O professor Emerson Ferreira de Almeida da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA) informou que diversas ações têm sido feitas para impedir a exploração de urânio no local, inclusive com questionamentos sobre estes procedimentos junto ao Ministério Público Federal (MPF).  Ele destaca que, apesar de serem as preocupações principais dos moradores que vivem nos arredores, as questões referentes à água e os riscos de contaminação foram separados do processo de licenciamento ambiental.

Em relação à água, a responsabilidade foi transferida ao estado do Ceará. Para Emerson Ferreira de Almeida, a fragmentação do licenciamento que transferiu a questão da água para o órgão ambiental estadual, o Semace, é “indevida” e viola a Lei Complementar 140/2011, “segundo a qual empreendimentos devem ser licenciados ambientalmente por um único ente federativo”. Neste caso, dois entes federativos estão atuando no projeto Santa Quitéria, o que é ilegal.

Já a questão da radiação passa por um processo separado: o licenciamento nuclear, a cargo da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN). A CNEN é uma autarquia federal e detém 99,99% das ações da INB e afirmou que o “licenciamento nuclear formal ainda não foi iniciado, sendo assim, encontra-se em seu estágio inicial”.

Porém, explicou o Emerson Ferreira, muitos dos elementos deste licenciamento só aparecerão no decorrer das operações iniciais da mina. “Ninguém sabe como será o comportamento da liberação de gases e poeiras, das técnicas sugeridas no local, e sua influência em uma provável disseminação de radiação ionizante no ambiente, ” apontou o professor Emerson Ferreira.

O consórcio irá separar urânio e fosfato por meio de uma tecnologia de extração elaborada recentemente, e que ainda não aplicada em nenhum outro projeto. Iara Fraga, da Articulação Antinuclear do Ceará, observou que moradores relatam que serão cobaias desse mecanismo de separação entre o fosfato e o urânio, e que o adubo químico que será usado em todas as regiões agrícolas do Brasil e dos países para onde os fertilizantes e a ração animal forem exportados também poderão ser contaminados.

Em matéria à Carta Capital em maio de 2022, a professora do Departamento de Saúde Comunitária da UFCE e membro da Articulação Antinuclear do Ceará, Raquel Rigotto alertou para os riscos da contaminação por urânio. Segundo a médica, o processo da lavra começa com escavação mecânica ou uso de explosivo para retirar do subsolo da mina o colofanito, que, após esse processo, é levado para o pátio de britagem. Após essa etapa, passa pelas etapas de moagem, peneiração e homogeneização. Durante esse processo, feito ao céu aberto, há geração de poeiras com radiação que podem se dispersar até longa distância, pois o urânio é um metal que gera diversas partículas. Essas partículas podem ser ingeridas na água ou alimentos contaminados, e serem absorvidas pelo organismo, causando transformações no DNA que provocam câncer e outras doenças.

O professor Emerson Ferreira de Almeida observou que existem normas internacionais que estabelecem limites máximos para a presença de contaminantes radiativos em fertilizantes fosfatados. Estas normas versam sobre a distribuição destes contaminantes radioativos e estabelece limites máximos justamente para que não haja a presença excessiva. “Estes contaminantes acabarão por se agregar ao solo onde o fertilizante for utilizado e aumentará a presença destes contaminantes nos produtos agrícolas produzidos nestes solos, ao longo dos anos. O empreendimento, supostamente, usaria técnicas de processamento que garantiram uma presença mínima destes contaminantes radiativos no fosfato a ser produzido. Mas não impede o acúmulo destes contaminantes no local de uso final,” destacou Emerson Ferreira de Almeida.

Risco de escassez de água

Ao redor do local há três bacias hidrográficas, e vivem 156 povoados na região composto por comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas e assentamentos da reforma agrária. Eles utilizam a terra como seu único meio de subsistência.

O professor Emerson Ferreira de Almeida destacou que entre as ações que estão sendo realizadas para impedir o desastre, a comunidade vem trabalhando para que o IBAMA reconheça a inviabilidade hídrica do projeto. “Para a concretização do projeto serão utilizados 855 metros cúbicos de água por hora, conforme o Relatório de Impacto Ambiental apresentando pelas empresas, considerando que se trata de uma região na qual a população não tem água encanada, e faz uso de carros-pipa e cisternas para sobreviver,” denunciou  o professor.

Os moradores da região relatam também a ameaça à produção agrícola, já que os produtos de agricultura familiar não poderão mais ser comercializados entre os municípios da região, pois os consumidores terão medo de comprar produtos contaminados pela radioatividade. Além das bacias hidrográficas e dos povoados, mais de 60 municípios, incluindo a capital, Fortaleza, podem ser afetados pelo projeto.

Iara Fraga, da Articulação antinuclear do Ceará informou que desde que o projeto foi retomado pelo governo Bolsonaro em 2019, as comunidades camponesas, quilombolas, indígenas e povos de terreiros, vem se organizando por meio de ações de resistências e visibilidade, pois esses relatórios ignoram que essas pessoas existem e tem seus modos de vida, sua ancestralidade, trajetórias históricas, e suas produções. Juntamente com lideranças comunitárias da Articulação Antinuclear do Ceará, que é formada por grupos como o Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), Cáritas Diocesana, e o Núcleo Trabalho, Meio Ambiente e Saúde da Universidade Federal do Ceará (Tramas/UFC), eles vêm alertando o governo do Estado e o país sobre o risco gravíssimo que esse projeto representa não só para as comunidades do entorno à área da mina, mas todo o caminho por onde o urânio vai passar até chegar ao Porto do Pecém, no Ceará.

Nas esferas municipais, vereadores encaminharam Projetos de Leis em Santa Quitéria e em Fortaleza contra o projeto. Por fim, foi concluído um parecer crítico de vários pesquisadores de diversas áreas apontando as contradições e limitações do estudo, municiando o sistema de justiça a atuar”, relatou Iara Fraga.

Vazamentos de urânio em Caetité (BA) comprova os riscos

As Indústrias Nucleares do Brasil (INB) estão ligadas a crimes ambientais recentes, como os ocorridos em Brumadinho e Mariana, Minas Gerais, e outras contaminações que envolvem a extração de urânio, como a de Caetité (BA) e Caldas (MG), crimes não reparados e que podem se repetir no Ceará.

Em Caetité, na Bahia, a INB fez extração e beneficiamento de urânio entre 2000 e 2015. Depois de cinco anos inativa, a lavra foi retomada no fim de 2020. Após diversas denúncias, a Comissão Nacional de Energia Nuclear comprovou o vazamento de 67 quilos de concentrado de urânio por 76 dias e que não foi informado aos órgãos de meio ambiente da Bahia, em 2009.

Além disso, estão em curso estudos da Universidade Federal da Bahia (UFBA) sobre contaminação e casos de câncer nas áreas próximas à exploração em Caetité, vazamento de material radioativo, acidentes, a contaminação da terra e de lençóis freáticos, e denúncias dos Ministérios Públicos demonstram os riscos de projetos como o de Santa Quitéria.

Audiências públicas

Outro passo do processo é a realização de audiências públicas, onde o Ibama deve debater sobre o Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima) do Projeto Santa Quitéria com os moradores. Apesar do ofício do Conselho Nacional de Direitos Humanos recomendar ao Ibama que suspendesse as audiências públicas, considerando as irregularidades do processo de licenciamento ambiental, elas seguem acontecendo. Nesta terça – feira (7/6), foi realizada a primeira audiência com a população de Santa Quitéria, na quarta -feira (8/6) foi realizada audiência em Itatira (Lagoa do Mato), e na quinta- feira (9) a audiência será realizada em Canindé. Os debates devem ocorrer nos próximos três meses.

Comunicação Comitê

 

 

 

 

emdefesa :